Monday, November 12, 2012

por Ana Rebelo

from-me-with-love


6ªfeira-à-noite
em casa dos amigos vêm-se melhores filmes do que cá em casa. primeiro, porque estamos todos juntos e é sempre uma animação e depois porque cá em casa há uma série de limitações tecnológicas “Oh tia, a tua televisão não tem HD?!”. em casa dos amigos jantamos e conversamos antes de preparar a sala; luz baixa, um sofá familiar que dá para esticar as pernas e por os pés em cima. depois há os snaks, muitos e divertidos e com a vantagem de não incomodar ninguém com o ruído ou de poder interromper para ir à casa de banho. e claro, a manta gigante que ilicitamente nos sussurra entre um mar de almofadas fofas 'se isto for uma merda podes sempre encostar a cabeça e dormir à vontade que ninguém está nem aí’. já sem sapatos e instalados sobre o grande écran seleccionamos o filme desta sexta-feira que será “From Rome with Love” de Woody Allen. bom, agora que penso nisso, acho que fui eu quem escolheu o filme tal foi o entusiasmo quando o vi no menu ‘ai, há tanto tempo que ando para ver, que bom!’, esfregando as mãos freneticamente como só quem me conhece pode entender. e não contrariar.


isto-não-é-uma-crítica-de-cinema-por-isso-não-me-chateiem
gosto do Woody Allen por motivos que talvez não sejam os mais politicamente-correctos ou que façam boa figura. aliás, Woody é um dos seus melhores personagens, revendo-se em todos os outros que vão povoando a tela, uns mais do que outros. assim que o vejo dá-me vontade de  rir e à medida que os anos passam tenho a certeza que ele mirrou, neste filme temos um homem bem mais atarracado com a mesma cara de quem está sempre ausente do que o rodeia e ao mesmo tempo a gozar tudo e todos, não esquecendo a si mesmo e esse é um dos seus brilhantismos, sempre vestido à intelectualóide de outros tempos (em que noutros tempos ser intelectual era um estatuto e não como agora que basta citar um autor estrangeiro, gostar da cinefilia de Woody Allen ou frequentar os cinemas King para que nos chamem pseudo-intelectuais como se fossemos uma estirpe possuída por um desejo irracional de ter a mania mas sem que ninguém perceba, estirpe essa excelentemente retratada pela personagem de Ellen Paige, provando que no final, tudo se desfaz como num poema de Paul Yates).


eu-não-sou pseudo-intelectual-mas-gosto-de-ir-ao-King
e até acho que foi no King que vi um dos meus filmes favoritos de Woody: “Whatever works". a partir daí comecei a gostar mais deste pequenote neurótico e que facilmente poderia ser misógino se não fosse o seu amor arrebatado por mulheres complexas, como todas somos, e pela sua feminilidade. no entanto, esta Roma deixa-me um sabor bitter-sweet; se por um lado me apaixona o cenário, revivo nele a cidade rodeada de história, o amor em cada canto, a língua italiana e a sonoridade do discurso, a fotografia colorida e de uma felicidade intemporal, à estória falta-lhe o salero que nem a deslumbrante Penélope Cruz no seu vestidinho rendado vermelho consegue distrair. ok,  são várias estórias numa cidade e com muitas pessoas de sítios diferentes e que de uma forma ou de outra se entrelaçam e nos dão a sensação de que o acaso não é mais do que isso, tal como Woody sempre gosta de frisar nos seus filmes (vide Match Point, uma obra prima e totalmente inovadora no seu portefólio). mas tal como na maravilhosa cidade de Paris, não senti nenhum pózinho mágico que confirmasse a mística que o título do filme antecipa. 


Woody-quantos-whiskey-já bebeste?
uma novidade neste filme é a moral sempre muito mal disfarçada, atabalhoada até. quase que cada estória tem uma lição mas com a diferença de que a moral sempre sai vencedora e tudo acaba em bem, sem sequer existir hipótese para um desfecho diferente, aos bons a benesse e aos 'maus' o fogo dos infernos. esta moral básica confere ao filme todo um certo nonsense que não me caiu bem. mesmo porque, quando todos os personagens caem em tentação, dá a ideia de que esse é apenas um comportamento pontual e sem antecedentes que valham a pena mencionar, imaculando-os. no final, a máxima da vida cumpre-se com essa pitada de ser humano que descobre às duras penas que o caminho é sempre mais sinuoso mas que a luz está ao fundo do túnel; a infidelidade que não compensa, a de que a fama não traz felicidade, a de que o pecado não tem forçosamente de morar ao lado se ouvirmos a voz da nossa consciência, a de que tudo tem um lugar certo na nossa miserável existência e se-tens-uma-voz-de-tenor-porque-carga-de-água-haverás-de-ser-agente-funerário?!


Allen. Woody-Allen.
o genro-mal-humorado é a minha personagem favorita. dou gargalhadas de cada vez que olho o seu semblante, ele pragueja, ele revolta-se, ele não quer que o seu pobre Pai exponha o seu grande talento em prol da felicidade que uma vida modesta de agente funerário requer, intocável e absoluta. se repararem este personagem que podia ser o centro do enredo - protagonista da verdadeira estoria de amor que todos desejamos, uma cidade linda, uma desconhecida e o amor acontece - é somente um namorado/ genro/ filho muito chato e que passa o tempo todo a ser a voz da razão que como sabemos é uma voz chatíssima que nos incomoda quando menos nos da jeito. este é um auto-retrato que não deixa margem para dúvidas, estamos perante um clássico e como clássico, respeitemos o seu mérito.


(cá-em-Lisboa-temos-estórias-mais-interessantes)
Jack: "With age comes wisdom."
Jonh: With age comes exhastion."


Monday, November 5, 2012

por Ana Rebelo

encore une fois


"a sua grandeza reside na renúncia;"
a semana termina com uma hora extra. aquela hora que já não nos permite ter mais ilusões: o verão foi-se. o tempo quente, as brisas nocturnas, os mergulhos na praia enquanto o sol se põe. o calor das paixões que nunca o foram mas que o efeito do sol na pele julgou que sim. e as caipiroscas de maracujá. agora, quanto muito, sumo de tomate bem temperado ou uma chávena de chá à noite, antes de dormir. está bem, isso também não é mau, nem as mantinhas quando a chuva bate forte na janela. mas acabou-se a durabilidade. vamos passar a acordar de noite e a hora que parece termos ganho, esvai-se quando lá fora sai o ar frio pelas nossas bocas. e depois ainda há o ter de (des)arrumar novamente o guarda-roupa-só-sei-que-comecei-a-sentir-frio-nos-pés. muito frio, como se fossem congelar, como quando entramos no mar e deixamos de sentir os ossos, terei eu deixado de sentir (me)?... e foi tudo tão de repente, e não me venham dizer que não foi de repente porque eu conheço bem o verão, foi lá que eu nasci. está aberta a época das mudanças de humor, das lágrimas de crocodilo e da inevitável sensação pesada do ser.


"(...) a sua dignidade, em não pactuar com a mentira;"
"para ver, para dar/ para estar, para ter/ para ir, pra ouvir/ pra sorrir e entrar/ para rir, pra voltar/ a tentar, pra sentir/ e mudar, pra voltar/ a cair, para me levantar (...)". a sala encheu-se de braços que ondulavam como quando o mar está bravo e ruge. à frente, o poeta. a voz grave misturada com as luzes, com as costelas que se viam à distância num corpo seco e maltratado, os poetas padecem do tanto que dão de si até às entranhas, despindo-se até do seu bem-estar. foram horas de emoção, de palavras gritadas por esta multidão de braços levantados e ondulantes. seria amor pela poesia, como eu? quis ouvi-la pela primeira vez recitada pelo autor. foi outra emoção, aliás, foram muitas outras emoções que senti naquela sala cheia e que não saberia descrever aqui. no meio de tanta gente é quando mais nos sentimos sós. houve um momento em que pensei que não ia ser capaz, em que pensei e-agora?!, em que pensei que todos aqueles braços ondulantes ondulavam para um mesmo lado, sincronizados como se já estivessem estado todos ali. e novamente me apaziguei. sem ensaiar. pois é. a vida também não se ensaia, por mais estúpidos que sejamos ao tentar fazê-lo.


"(...) a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras."
hoje deixei-me no arrastar da preguiça (com alguns pesos de consciência). durante a tarde o repouso chega com a serenidade que a noite não traz no sono, incomodando-me com sucessivos pensamentos, os assobios do vento, as voltas na cama, apetites nocturnos e deambulações pela casa. resignada, como se alguém tivesse faltado ao nosso compromisso, volto para cama e enrosco-me como um caracol que se esconde no sítio mais seguro que conhece - a sua casca. respiro fundo mas dói-me o tórax. os dentes pesam na minha boca e daqui a pouco vai ser quase de manhã mas ainda vai ser de noite por causa da hora que ganhámos. há sempre um senão em tudo. não sonhei que os dentes me iam cair mas continuam a pesar-me, sonhei antes com coisas boas mas sem a cara das pessoas e sem saber para quem são boas, mas imediatamente soube que isso não importava se eram boas. coisas com que também sonho acordada, às vezes, mas que tento distrair para que um dia possam mesmo acontecer sem a antecipação que por vezes estraga tudo. 


"desamparado até à medula (...)"
ponho a cabeleira platinada. faço poses sexy e repenico os lábios. sou fatal, destruidora, arraso contigo num minuto e não quero saber. o meu coração é tão frio quanto a cor do meu cabelo mas sou capaz de te acolher no calor dos meus braços. fumo cigarros como uma chaminé. por instantes, só por instantes. não me importa o que pensas de mim. ponho a cabeleira preta e agarro-te para dançar. transpiro e roço-me em ti, esfregando o meu sexo no teu. gosto de andar descalça. quero levar-te para casa. quero que dances comigo toda a vida. ponho a cabeleira cor-de-rosa e os meus olhos ficam subitamente tristes. bebi muito vinho e sei que estou perdida algures, mas naquele momento, não me importa disfarçar nada. os meus olhos estão parados no tempo, entre o que sou e o que tu achas que eu sou. provavelmente vais desejar-me, com lascívia, ou então vais sentir-te impotente perante mim. se me queres, vais ter-me realmente, ainda que possas não entender tanta coisa, só e só porque nem eu mesma entendo. o que eu sei é que podemos ser aquilo que quisermos ser, especialmente se houver uma peruca a ajudar. 


"(...) afogado nas águas difíceis da sua contradição (...)"
eu podia escrever uma história assim. foi o que pensei, talvez de forma arrogante, ao ouvir a narração do texto auto-biográfico de Cláudia Clemente. eu podia pegar na minha história e escrever muitas estórias sobre ela, a minha história. é fundamental ter-se história para escrever (acho que já falei nisto algures) mas se não houver experiência, não há nada para contar. mesmo quando estamos a criar - prefiro esta à palavra 'inventar' - vamos sempre lá dentro e às vezes bem fundo à procura de um motivo para nos sentarmos a escrever. é preciso usar todos os sentidos para escrever. até podia não ser grande coisa, a estória da minha história, mas era real e ser real é o mais importante. ter alguma coisa para dizer, para contar. para transmitir e como que alguém se possa identificar. para viajar com quem quiser entrar num dos meus capítulos. cansam-me as pessoas que estão sempre a dizer que podiam e não fazem. canso-me.


("(...) morrendo à míngua de autenticidade")
shiuuu... vai começar. pressinto que tudo está apenas no início. novamente. as luzes voltarão a acender-se e o palco é imenso, nem sei para que lado me hei-de virar, de frente para uma multidão? fujo? não. dou um passo em frente, em direcção ao que parece ser uma luz branca e grande num vazio preto, não reconheço nada nas sombras, a luz ofusca-me. mas continuo, pressinto que essa luz nunca me vai largar. vai estar sempre lá, mas ainda bem, para que eu sinta com força o seu impacto, só por causa dela dou mais um passo. e outro e mais outro. passos vazios que são cheios de caminho. os aplausos trazem-me sempre de volta. 

Monday, October 22, 2012

por Ana Rebelo

o último apaga a luz



o feijão azul
"não sei cantar para lá do que o meu coração quer expressar." não sei escrever para lá do que o meu coração quer expressar. é assim que me sento aqui, todas as semanas, a sentir. a recordar. letra a letra, com algumas pausas e momentos desinspirados (o que é que interessa aos outros aquilo que sente o meu coração? toda-a-vida-me-vou-perguntar-o-mesmo), expondo-me, com as fragilidades de qualquer ser-humano mas que todos gostamos de esconder só que escrever não é compatível com isso. criando e imaginando coisas que podem ser a minha estória, a do outro ou a do outro. para se escrever tem de ser ter história, viver história, tem de se ser de todos e de ninguém e mais ainda, de si mesmo. somos ladrões de palavras, apropriadores vis do que ouvimos e sabemos e julgamos saber. somos salteadores, distorcemos, inventamos, eles, nós, estas pessoas, os que escrevemos. somos como as crianças a perguntar 'oh mãe, mas porque é que o feijão da sopa tem de ser castanho?' e a não ficar satisfeitos com uma resposta só. são estas as asas que nos dão e crescem connosco. nada a fazer. se conseguirmos não as cortar, seremos donos do poder da interpretação da realidade. é isso que conta.


a menina que lê a história da terra
imaginei-me lá sentada em cima, sim, lá em cima no meio das nuvens. com tranças longas, uma de cada lado, assim uma espécie de Doroty encantada, com os seus sapatos vermelhos brilhantes e umas mãos delicadas, afinal, segurar o livro da vida não deve ser tarefa simples, tem muitas histórias de todos e explica tudo, até porque é que os feijões da sopa não podem nunca ser azuis. se fosse uma mãe a levar o filho à escola talvez lhe tivesse contado a história da menina da terra assim: um dia ela ficou doente e a terra teve de parar por dez minutos. D-E-Z. cá em baixo as coisas ficaram catastróficas porque ninguém aproveitou para parar para pensar ou para ir fazer qualquer coisa que quisesse muito e nunca tinha feito, não, as pessoas começaram a correr, em pânico, a gritar, a atropelar-se. e tu, querido, o que farias se o tempo parasse dez minutos? porque é que reclamamos algo que na realidade não queremos? (a mãe pensaria) porque é que não deixamos, simplesmente, que nos ofereçam a dádiva da simplicidade, sem desconfiar dela? (a mãe continuava a pensar) porque é que o feijão que tu disseste que não podia ser azul, está agora entalado na minha garganta? (a mãe chora).


o mundo é do tamanho do meu quarto
êxodo: s.m. Saída; emigração em massa de um povo (ou de parte dele); (...). foi o que encontrei no diccionário de português online. queria lá encontrar também as razões deste fenómeno, assim tão bem explicadas, como num diccionário. definições precisas. não existem, seria preciso procurar mais e tantas outras palavras, algumas bem feias. quando emigrei em 2006 lembro-me de ter causado um choque na família e amigos. era tudo muito longe e muito sem sentido 'porque é que te vais meter nisso?'. eu confesso que não sabia muito bem, apenas sabia que tinha de ir. e acho que agora acontece o mesmo mas com uma certeza por vezes angustiante. agora dizem-nos que não há solução. de tanto ouvir, acreditamos mesmo que não há e lá vamos, cheios de projectos, esperançados num futuro melhor. mas não haver solução é tão definitivo quanto a morte, aquela sra de fato preto e foice ao ombro que aparece sem ser anunciada. aos que vão, a coragem de ir para o desconhecido, de arriscar, a luta. aos que ficam, a coragem do que já conhecem, a resiliência. uma certeza porém: o livro somos todos nós que o escrevemos.


open. vancancy. lights, please
senti-me como se voltasse a ter vinte anos. senti-me como se estivesse a quebrar as regras, e estava, aquelas impostas pelo mundo dos outros. e as minhas regras, as que me imponho também, de certa forma (estas sim, tão mais difíceis de quebrar). estava decidida. fui furtiva na abordagem, deslizei tranquilamente pela noite e escondi-me nas sombras dos outros, ocupados nas suas vidas, sempre ocupados nas suas vidas que nem se dão conta do que perdem, de tantas sombras que lhes espreitam por cima do cotovelo. bom, e afinal as regras também foram feitas para ser quebradas (foi a menina que escreveu no livro de história da Terra, eu agora não estou a inventar nada). nos últimos dias as regras têm-me atrapalhado, deixado a pensar se o bem que estou a fazer é a mim ou ao outro e nem sequer sei se vale a pena ter o outro em conta, o que ainda é pior. por isso, subi o muro e passei para o outro lado, onde encontrei nos braços do passado o colo do futuro.

recorta-me
há pessoas das quais nunca me esquecerei e que participaram no meu molde. para além da minha mãe e do meu pai, cujos parâmetros em que me influenciaram são bem mais evidentes e de efeito prolongado, tem sido um trabalho muito compensador ver as definições cada vez mais de perto, o detalhe, o rigor com que todos os meus traços de personalidade se definem através das pessoas com quem me relaciono. essas pessoas, algumas que ainda permanecem na minha vida e continuo a aprender com elas, outras que já não sei onde estão (sorrio ao recordar-me), ou ainda aquelas que vi apenas uma vez, uma-vez. houve pessoas com quem só estive uma vez e que bastou para que me salvassem das armadilhas do ego.


("...and then she grew up")
ultimamente oiço falar muito na cor dos sonhos. ou ausência dela. eu não sei se sonho a cores ou a preto-e-branco. e sempre que me deito, determinada a levar essa tarefa comigo no sono, acordo novamente sem saber. não faço a mais pequena ideia se os meus sonhos são coloridos ou da cor dos filmes antigos, também é bonito, aquele preto e as variações todas do cinzento e o branco muito branco. a verdade é que não sei e sinto-me frustrada por não me lembrar, nem mesmo quando acordo já lançada de caneta em punho para escrever o que sonhei, dizem que é assim que nos lembramos dos sonhos. talvez não me lembre da cor dos meus sonhos porque vivo num. cá em baixo, a escrever as estórias da terra, chocando os meus sapatos vermelhos um contra o outro.


Monday, October 15, 2012

por Ana Rebelo

A intemporalidade



o-brilho-dos-olhos
aos 14 anos disseram-lhe 'nem todos têm de ser doutores.’ e ele que não gostava nada de estudar!... aquilo foi música para os seus ouvidos. era um miúdo esperto, sem ser muito aplicado conseguia o que queria quase sempre e quase sempre saía bem no figurino. nem chegou a frequentar o 12º ano. o plano era comprar rapidamente a sua independência. ter um trabalho que lhe permitisse ser livre, que o ajudasse a acalentar todos os sonhos até conseguir transformá-los em mais do que ilusão. a pressa em viver era muita.


mulher-séria-não-tem-ouvidos
entrou na sala, logo atrás daquele homem que não parecia ter muito boas maneiras 'entra, entra. importas-te que fume? bem, a pessoa que eu procuro tem de estar sempre ao meu serviço, por exemplo, ir buscar-me os fatos à lavandaria e alugar-me uma call-girl se for caso disso'. aos 35 anos estava novamente à procura de trabalho. o administrador para quem trabalhara tantos anos tinha falecido e não havia mais lugar para ‘secretárias antigas’. aos 35 anos já tinha trabalhado treze anos, dos quais nos últimos quatro, também a tirar uma licenciatura. o seu sonho era ser gestora de recursos humanos. era a sua terceira entrevista e decidiu que não queria ser selecionada.


pela-boca-morre-o-peixe
‘eu sou o maior’, disse-o convictamente em frente ao espelho do elevador, enredado na sua música suave. os seus dentes eram brancos, o nó da gravata, impecável. ‘tu és o maior’, repetiu a si mesmo, reflectido no espelho. entrou em casa, o silêncio. depois de um dia frenético no escritório, das palmadas nas costas, dos elogios dos colegas, o silêncio. ‘vamos celebrar?’ disse para o retrato que estava em cima do piano, eram os seus pais. e o copo vazio logo se encheu de bolinhas esfusiantes. sempre desejou aquela promoção. agora tinha tudo o que queria. A cidade iluminava-se para si e o champagne acabou. tinha 46 anos e não havia canto do mundo ao qual não se tivesse habituado. excepto ao silêncio da sua casa.


nariz-arrebitado
‘sabe, eu queria muito ter sido Mãe’. os seus olhos confirmavam-no, mas logo se apagavam, resignada. ‘tenho aprendido tanto com a vida!... não sou uma mulher amarga, nem infeliz, pelo contrário. vivi tudo, vivi tanto e com tanta garra. fui sempre dona das minhas convicções. tomei opções. fossem quais fossem, na altura pareceram-me as correctas. não foi a vida que me faltou, fui eu quem a escolheu.’ tive a nítida impressão de vê-la sorrir, à medida que se recostava na cadeira. Era linda aos 65 anos. 


mãos-de-tesoura
quando casaram queriam apenas ser uma família. construir um sonho. casaram logo depois de terminarem o curso, os pais ajudaram com a entrada para a casa. Depois ele foi estagiar para um escritório de advogados, diziam que era um advogado promissor. quando foi Pai os colegas até lhe compraram uma garrafa de champagne e charutos para fumar. um dia chegou ao escritório e tinha um email a avisar que tinha de apresentar-se no gabinete dos recursos humanos às 15h. era o primeiro dia de escola do seu filho.


(estratosfera)
há dias de muito medo, confesso. quando converso com pessoas muito mais velhas, elas parecem nunca ter sentido este medo, mesmo quando a vida se lhes tornou mais dura. depois lembro-me que o medo é uma criação do nosso imaginário, o bicho-papão que nos impingiam quando queriam que comêssemos açorda ou fossemos para a cama às oito da noite. STOP. há uma força imbatível que nos tem mostrado que, a partir de determinada altura, só pode ser melhor. Dá para começar de novo?

Monday, October 8, 2012

por Ana Rebelo

a-ver-se-te-avias


alma

ela voltou. com a mesma camuflagem que só alguém que ela queira consegue desmanchar. falou-nos de si, contou-nos estórias. anda a ler um livro, um livro de que agora não me recorda nem o nome nem o autor. mas lembro-me de uma dessas estórias, uma das que vinha no livro e que ela partilhou como um tesouro bem guardado. vou tentar contar como me lembro. em tempo de pós-guerra havia uma taberna que só servia cebolas aos seus clientes. sim, cebolas. cebolas cruas, uma tábua com diferentes formatos em cima de que cortar e uma faca afiada. as pessoas chegavam, sentavam-se e era-lhes servida uma cebola que elas cortavam, cortavam até ao fim - e apesar de saberem porquê, teriam medo, de certeza, medo de descobrir e revelar as suas fragilidades - mas elas seguiam cortando, certas de que o que quer que fossem enfrentar, seria um pesadelo muito menor do que aquele que viviam.


música
ao cortar a cebola as lágrimas começavam a escorrer pelos rostos pálidos e inexpressivos e palavras de desabafo corriam pelas bocas afora, assim, como se esperassem há muito. quando se vive a angústia das memórias temos de torná-las presentes para que consigamos libertar-nos. da angústia, não das memórias, que essas querem-se como este livro, daqueles que mantemos à cabeceira e que relemos de quando em vez e que nos faz contar estórias e gostar delas. gostar de nós. continuando, um pouco de tempo depois que leva a cortar uma cebola, quando já todos choravam e conversavam uns com os outros, estranhos, conhecidos, pessoas ao acaso, a orquestra começava a tocar finalizando a purga. era então aí as pessoas levantavam-se e iam-se embora, deixando lugar aos próximos clientes. na minha imaginação chamei-lhe a Taberna das Lágrimas. ela disse que nunca mais cortaria cebolas como antes.


o sorriso
podia ser pior. podia ter inventado mil desculpas e coisas para fazer. disfarcei com suspiros profundos e tremidos. mas não tinha como, aquele nó apertado na garganta não me deixava engolir mais nada, lá vêm elas, as lágrimas, querem sair. não havia ninguém à volta, ninguém que as testemunhasse e por isso, não havia mais desculpas e deixei-me ali, a chorar. chorar é bom, chorar faz falta. diz-se. eu chorava mais do que choro e não sei porquê. eu falava mais do que falo e ouvia menos do que oiço e não sei porquê. eu desabafava as minhas angústias mais do que desabafo e não sei porquê. mas se tornar tudo presente, as angústias, consigo saber. um dia podíamos criar a nossa taberna-das-lágrimas, disse ela. a estória das cebolas que fazem chorar quando não conseguimos chorar, de uma simplicidade tão absurda e ao mesmo tempo tão acolhedora, tão serena. talvez fosse o regresso, o regresso que sempre traz a expectativa de decisões e mudanças. podia ser pior. podia chegar ao último copo de vinho e não ter nada para sentir.


the-yellow-brick-road
'procurar o caminho'. fazemos retiros, caminhamos lonjuras e vamos para sítios bonitos. dizemos que é para pensar. para 'procurar o caminho'. quando começamos a viagem a nossa preocupação reside em começar a pensar, pronto, começa agora, 1-2-3-vou-parar-para-pensar. isto escrito soa tão mal quanto dizê-lo alto. soa (acabo de dizê-lo e é como se fosse um eco, nada de novo vem, somente uma intenção). não compreendo o caminho como uma descoberta empírica que cumpre uma série de requisitos nesse tal contexto que é o nosso e que queremos mudar (na maioria das vezes, é por isso que decidimos 'procurar o caminho'). essa tomada de consciência não será já o início de um novo caminho, um aviso de que tudo o que somos nesse momento é um veículo para a mudança e nada mais? de repente, estamos tão obcecados com isto que não prestamos atenção às estrelas cadentes. também não choramos. nem sequer ligamos aos outros ou temos a possibilidade de reconhecê-los. encontraste?... ah ... distraí-me a procurar.


carícias
caminhando se encontra. na taberna-das-lágrimas refugiamo-nos da angústia, da opressão de quem nos impõe regras que não podemos aceitar, de quem nos esmaga o coração, do que nos mata a vontade. na taberna-das-lágrimas não procuramos nada a não ser o que se nos revelam, numa palavra inesperada, num olhar subitamente nublado, num abraço de alívio. paradoxalmente, seria no meio do caos que as emoções deviam atingir o seu expoente máximo. é sempre quando nos sentimos perdidos algures pelo caminho (ou sem caminho) que os sentimentos nos engrandecem. qualquer busca passa por viver apenas aquilo que é verdadeiramente bom e que prevalece como autêntico e único. um carinho de uma Mãe, o riso de um bebé. é no caos que as grandes paixões se acendem e que os desejos de partilha acontecem sem querer, querendo tanto. acredito que estamos todos perdidos. a viver o caos e sem o ombro do amor. porque esse, ele, o amor, também anda a 'procurar o caminho'.


(suor e lágrimas)
horário de funcionamento da taberna-das-lágrimas: todos os dias, slots de meia hora por dia a qualquer hora. em qualquer ombro por perto. se não tiverem um ombro por perto, agarrem-se aos vossos joelhos e lembrem-se como eles vos têm segurado de pé.

Monday, October 1, 2012

por Ana Rebelo

crónica-sem-título


olhar sem ver 
há uma espécie de inevitabilidade nos ciclos da vida, aparentemente desligados uns dos outros. hoje somos assim, estamos aqui e tudo parece encaixar (ou não). amanhã estaremos noutro lugar e seremos diferentes, não na essência, mas fruto do percurso que fazemos. e somos sempre nós, a viver várias histórias de vida seguidas, como os capítulos de um livro que lemos com vontade crescente até ao fim. nunca sabemos quando a nossa história vai terminar e talvez seja por isso que existe a esperança, para que continuemos resilientes e com garra e força nas pernas para continuar. a certeza do fim é inevitável mas só depois de escrevermos todos esses capítulos que acabam por convergir em algo (há quem lhes chame destino) e alinhar-se, como os astros, trazendo a razão de tudo o que julgámos não fazer qualquer sentido.


ouvir mais
não é fácil viver por capítulos. somos humanos e a ansiedade aflige-nos. ansiedade, a pior de todas as maleitas, aquele aperto, ai aquele aperto bem no meio do peito que nos lembra constantemente a existência de alguma espécie de perigo em tudo o que é desconhecido. há sempre aqueles capítulos que nos correm menos bem e é certamente por isso que se arrastam, uma espécie de tormento que nos infligimos sem querer, sendo que o sofrimento não é uma escolha, o sofrimento é orgânico e inconsciente, apenas se manifesta de diferentes maneiras consoante o sofredor. e sendo que é tudo irracional, como ignorar o cansaço que nos desafia, fintar o desânimo de não ter-a-certeza-que-amanhã-vai-tudo-ser-melhor... muitas vezes apetece encostar às boxes, como um cavalo cansado de correr. também existem aqueles capítulos que parece que começam bem e afinal não estamos a começar nada. outros há que nunca começam e que insistimos em querer compreender porquê. os sinais, ai os sinais...


boca infame
não existe nem regra nem fórmula para escrever um bom capítulo nas páginas do nosso livro. escreve, apenas. como uma pena, de mão livre. escreve apenas porque gostas de escrever, porque te dignifica, porque te coloca no centro do teu eu, no comando da tua vida, pelo menos naquilo que podes comandar e os teus desejos podes consegui-los. escreve com palavras bonitas e feitas, longas ou efémeras, mas deixa que o capítulo se estenda no tempo tanto quanto assim o coração o determinar. esquece tudo o resto porque não vai fazer diferença - as coisas são porque têm de ser, só por isso. e não falo em conformismo, e sim em desígnio. desilude-te do acaso e de outras desculpas, é o querer que vai determinar quantas são as linhas do teu capítulo.


smell the roses
há alturas em que não sai nada. nada. tudo parecem verdades la palisse, frases que já foram ditas e escritas por alguém que viveu num passado que aprendemos na escola. mas pensando bem, a vida não tem assim tantos segredos. basta estarmos atentos para perceber que há uma ordem natural das coisas que nem sempre vai ser clara ou evidente, que vai dar voltas e voltas até chegar ao sítio onde tem de chegar, que nos vai consumir e entrelaçar-se com outras vidas que, à partida, não fazem qualquer sentido combinadas com a nossa (mas porquê?... pára de perguntar porquê à vida). quando for hora, saberás mudar de página, começa outro capítulo. lá atrás, naquelas maravilhosas páginas que escreveste, sim, maravilhosas porque são tuas, deixaste-as livres para ser quem são, deixaste-as soltas, lá atrás estão as recordações e os elos que vamos entender um dia. talvez. como os copos de champagne.


toca-e-foge
não és tu, sou eu. ali estava ela, sentada em frente a mim. não és tu, sou eu. os seus lábios eram vermelhos, humedeciam com facilidade e fazia com que as palavras se misturassem, apetecia-me tanto beijá-la ao mesmo tempo que sabia que o que ia dizer a seguir era uma desilusão para mim. uma mulher inteligente jamais diria algo tão insultuoso. mas disse. e repetia-o, disfarçado nas mais diversas desculpas, um ror de frases feitas e previsíveis. eu permanecia absorvido pelos seus lábios e confesso, pelo desejo de entrar dentro dela. mas ela continuava. não és tu, sou eu. deixei que continuasse, provavelmente sentia-se na obrigação de aliviar a sua consciência, ou talvez achasse que me faria sentir melhor, por favor, eu só pensava numa coisa naquele momento - possuí-la. já que nada mais ela queria de mim depois de me atormentar os sonhos. afinal, ela adorava clichés.


(a voz que te diz o que já sabias)
mas é tão claro que não és tu. isto não é sobre ti, é só e exclusivamente sobre mim, sobre as páginas de um novo capítulo que comecei a escrever, algumas notas de rodapé ainda por arrumar, mas que escrevo todos os dias, um a seguir ao outro, fielmente ao que contam. é sobre mim porque me deixo ir quando acredito que é assim que se descobrem pessoas e emoções, que se vivem momentos sublimes, que se nos aperta algo entre o peito que se chama ansiedade e que nos faz sentir vivos. é sobre mim porque eu escolho acreditar, eu escolho driblar as minhas expectativas, geri-las ao sabor dos acontecimentos. não és tu, sou EU. eu sou dona da minha vontade. e que privilégio tão doce de que nunca poderei abdicar.

Tuesday, September 25, 2012

por Ana Rebelo

nervos em frança


terçolho
estou atrasada na escrita, eu sei. permiti-me a isso, eu escrevo sempre em cima da pressão de tudo o que me acontece ou que gostaria que acontecesse ou que não aconteceu de todo. não se iludam, nem sempre as palavras são reais, sequer tão reais quanto aquilo que quem as lê deseja. ou quem as escreve, iludidas. e pronunciá-las então, há quem não lhes confira qualquer dignidade só porque são fáceis de dizer. mas tudo acaba por dar certo, para quê preocupar-me? é assim a vida, como as palavras, acabam por sair e ter significado para alguém em algum momento, fazendo a vida acontecer. por vezes há um bloqueio inevitável que se entrepõe entre o deve-e-o-haver e que inviabiliza um resultado imediato. mas que não invalida que não vá ser bom. talvez este seja um desses casos.

otite
depois tem sido a semana toda nisto. a t(e)su, o passos coelho, a t(e)su, a austeridade, a t(e)su, as mamas da Kate. proliferam os post zangados no facebook, repetem-se os cabeçalhos dos jornais e os separadores do telejornal. mais do que a t(e)su, o passos coelho, a austeridade e as mamas da Kate (umas mamas perfeitamente normais), acho que estamos a entrar num modo repeat-after-me como se a cassete nos fizesse sentir melhor. "Worry is like a rocking chair, it gives you something to do but get's you nowwhere." a não ser ao que parece que é mas não é. nunca é e não vale a pena tentar entrar onde não somos chamados mesmo que assim nos possa parecer, os sentidos também se enganam, então para quê preocupar-me? se ninguém se importar com estas palavras elas perder-se-ão no seu significado.

língua comprida-conversa da tanga
time-is-over-rated. há-de haver tempo dependendo do que queremos dele. é mesmo a vontade que conta. o tempo só nos gere quando deixamos, invariavelmente, e se deixamos, seremos os seus eternos escravos mais fieis (1º paradoxo). tenho tentado prioritizar, pensar no sonho, planear o sonho, viver o sonho. seria bom que tudo funcionasse como num cronograma, com datas de lançamento e as várias fases e hora certa para go live. mas normalmente os sonhos não acontecem assim, sem algum imprevisto, sem algum risco e sobretudo, sem a mínima ideia se alguma vez vamos acordar para ele. dá tanto trabalho sonhar!... e é quase tão perigoso tentar evitá-lo quanto inevitável que ele aconteça (2º paradoxo).

garganta
ela vai à janela e penteia-se. é loira. penteia os cabelos, não muito compridos, penteia e penteia, frenética, de cabeça para baixo e sem se importar com quem possa estar a ver, como eu. e continua, penteia-se como se os cabelos fossem nascer mais depressa, quem sabe é por isso mesmo. ela vai para a janela e deixa que caiam os cabelos que a escova já não agarra, as ideias que a cabeça já não cultiva. as ideias e os quereres que já não são quereres, são as mentiras, as mágoas, as vezes que forem, e a escova penteia-lhe os cabelos como se nada estivesse perdido. engasga-se na sua própria generosidade, convencendo-se de que nunca mais lhe tocarão num fio de cabelo.

bofetada-sem-mão
já vai tarde, este meu atraso. esta minha falha. este meu incumprimento. escrever tem destas coisas e como eu já disse atrás, se ainda estás aí, há alturas em que há vida que tem de ser vivida sem tempo para escrevê-la primeiro. é hora de tirar a maquilhagem. primeiro, passo o sabão e depois o tónico e só depois aquele creme que ajuda a prevenir as rugas. e quando acordar amanhã, a minha pele vai parecer a de um bebé, como se tivesse acabado de chegar ao mundo e que não faz a mais pequena ideia do que se vai passar a seguir.

(o buraco da ansiedade)
"This blinding kiss breaths helium into my heart
and erases the embraces of all other lovers
with a kiss...(...)

in 'Helium Reprise', Orton/Watchel/Waits 1999

Monday, September 17, 2012

por Ana Rebelo

push-the-button


os olhos são setas
sempre ouvi dizer que no-pain-no-gain. sim, estamos em crise, sim, temos de estar agradecidos pelo que temos. não, não temos de nos conformar com a injustiça, com um trabalho precário, com quem não nos reconhece, com quem não sabe gerir, com a incompetência de tantos que se dizem empreendedores, com falsas oportunidades, com interesses escondidos atrás de boas intenções. não. recuso-me a acordar com o pensamento "lá-vou-eu-para-aquele-sítio-ignóbil", todas as manhãs sem falhar uma vezes sem conta, depois de ter passado a noite a sonhar com isso, porra, não. e não me venham com a conversa das responsabilidades e das obrigações, também as tenho. todos temos responsabilidades e obrigações. sejamos francos, honestos connosco em primeiro lugar, para que possamos estar prontos para lutar. tenhamos a coragem que agora é precisa para nos libertarmos do servilismo, do medo que nos querem incutir a cada anúncio, a cada notícia, para depois nos entorpecerem com as manhãs inúteis da TVI. cuidado. as promessas são de uma grande responsabilidade. mas as acções, essas, são ainda mais determinantes.

gritos que se libertam
atrás de mim virá quem bom de mim fará, a vida mostra-nos que é sempre assim, sempre assim com honrosas excepções sendo que o mundo é feito dessas excepções. corroem-me as verdades imutáveis apenas porque o seu carácter é tão cómodo para quem faz o mundo girar. nós, que estamos no bastidores, aquele lugar onde estão as cordas que fazem abrir a cortina, que deixam voar o artista, que mudam o cenário quando está na hora de começar o próximo acto, logo nós, no sítio mais importante, no sítio onde tudo se passa porque o resultado nunca - nunca, ouviram? - seria igual sem todos, nós todos que estamos lá atrás. seremos assim tão poucos que não podemos ser tantos quanto a vontade de sermos mais?  eu vi. eu vi a malta que saiu à rua. e era muita gente, muita gente aos milhares. e não foi para ir ao shopping.

vozes que se alevantam
não sei entender de política o suficiente para comentá-la. mas oiço e leio e observo e interpreto. sei de pessoas, sei. sei que estamos sempre prontos a atirar a primeira pedra e logo nos esquecemos dos nossos telhados. também sei que a nossa memória é selectiva o bastante para baralhar a cronologia, os factos, o quê? o quem? considero-me uma privilegiada. faço parte desta massa que se levanta, que se revolta contra as injustiças, o fundamentalismo, os falsos burgueses, as mentalidades pobres, os esquerdas que passam à direita e vice-versa, os quintais, os pelourinhos, o estou-me-a-cagar, já-não-me-serve, vale-tudo-para-salvar-o-meu-couro. temos andado a jogar ao Monopólio negociando com as casas dos outros e por esta altura nem sei como é que o Rossio ainda não foi vendido a um grupo chinês qualquer. é verdade que a capacidade associativa por si só não vai resolver tudo, mas as pessoas como eu e como tu estão finalmente a unir-se em volta do que é importante.

cheiros que se colam no nariz
me Tarzan, you Jane. dantes era tudo tão mais simples. dantes não havia listas de requisitos ou fórmulas definidas dos sete-passos-essenciais-para-um- primeiro-encontro-com-boas-perspectivas-de-passar-ao-segundo. gosto da palavra dantes porque me faz sentir numa outra época, como na telenovela da Gabriela que agora me traz de volta os tempos em que a minha Mãe via todos os episódios comigo sentada ao colo. o meu dantes é mais recente, de uma época em que ainda éramos romanticamente simples, afectivamente menos exigentes. talvez porque éramos mais livres. éramos mais conscientes de que a vida sem determinados riscos não sabe a viver. o amor também precisa de uma revolução de cravos.

mãos que enrolam num abraço
escolho o silêncio do mar ao longe, sentada ao teu lado num grão de areia. escolho o silêncio não porque esteja cansada da tua voz ou surda para falar mas porque estares ao meu lado é por si só a ausência de silêncio. escolho estar sentada ao teu lado enquanto remexes na areia, enquanto me espreitas de soslaio tentando interpretar-me, pensando que não te vejo mas sabendo que sim, que espreitas ao meu silêncio. escolho que não quero estar em mais lado nenhum naquele momento. naquele momento em que o mar se encontra próximo e o teu cheiro vem no vento. escolho que são estes silêncios que me acolhem num lugar que ainda não descobri. escolho ser quem sou, assim, vulnerável perante ti. escolho o desconhecido (que não és tu). escolho viver.

(a máquina da verdade)
estou distraída. a partir do momento em que o escrevo, tudo se torna mais real.

Tuesday, September 11, 2012

por Ana Rebelo

rentrée


os (meus) olhos
regressava de Cascais pela Marginal. ao olhar o grande Atlântico com reflexos prateados vindos do sol incandescente, tão grande, tão bonito, pensava porque é que a nossa Marginal é tão diferente do calçadão do Rio de Janeiro, com aquela pedra branca e cinzenta herdada de Portugal, de Portugal, aquele país que tem uma calçada tão bonita em pedra branca e cinzenta de que todos falam no Rio de Janeiro. aquele canto da Europa tão especial, de língua bonita, é assim que eles dizem. os passos na Marginal não são feitos de pedras brancas e cinzentas e o passeio por vezes à estreito e é uma via um pouco mais tranquila que a Vieira Souto e tem vivendas e prédios bonitos como os do Leblon ao Arpoador. é verdade que poucas capitais se igualam em esplendor à paisagem luxuriante do Rio. mesmo sendo as praias do calçadão do Rio de Janeiro bastante comuns, mesmo sendo uma cidade tão movimentada, mesmo sendo tão poluída, mesmo sendo criminosa. a nossa Marginal nunca foi tão amada assim.


os (meus) ouvidos

não me doeu nada. apenas o orgulho e essas são as feridas que melhor se curam. arranquei o coração e fui implacável, de uma forma que me fez sentir que o destino sou eu quem o traço, com riscos de giz no chão, é certo, mas um a um sou eu quem os desenha. riscos que podem - e eu sei que vão, sempre - deslizar numa plataforma escorregadia de tempos que não controlo, de ideais que não partilho, de gente que me atropela. mas a minha mente, quem eu sou, no que penso, eu controlo. é a única coisa que posso controlar. a nossa Marginal não é celebrada pela música quente que faz arder o coração. mas eu vinha assim, fixada neste um pensamento que não sei bem porque insistia. talvez porque só quando me transporto para outro lugar é que sei que estou em casa. e não há nada que mais ame do que a minha casa, mesmo quando tem rachas nas paredes e pode cair a qualquer momento.


a (minha) boca
quem disse que o tempo foge, que o tempo não chega, que não conseguimos ganhar-lhe? eu ganhei, eu deixei-me levar por ele, cega e agarrei-o e ganhei mais uma hora por dia durante quinze dias. durante quinze dias eu fui abençoada com mais uma hora, uma hora, uma hora junto das outras que também me pareceram ganhas. o tempo ganha-se, aprendo. no meio do Atlântico os banhos parecem mais demorados e quentes, os vales mais verdes de um verde como aquele verde onde os animais andam à solta e são felizes, o passo é mais lento e as palavras, preguiçosas, as flores mais coloridas, a generosidade está à vista, completamente arrebatadora. nessas horas, nesse tempo todo em que só ganhei, ganhei até ficar cansada do tempo como nas férias de verão de 3 meses quando andava na escola, a mudança, a mudança foi tão óbvia, tão urgente.  mas tudo isso pode esperar. o tempo esperou por mim e deixou que nessa hora ganha, nessa só hora, me esquecesse de que ele não espera por nada nem por ninguém.


o (meu) nariz
era hora de voltar. hoje e ontem não consegui dormir. levantei-me e fui ao frigorífico, bebi um leite com chocolate daqueles que se sorvem pela palhinha e nos deixam a boca fresca e voltei a deitar-me. de um lado e depois do outro e depois virada de barriga para cima e não conseguia dormir. sempre que fechava os olhos, carregava-vos, sabem, fazia força mas estava a enganar-me a mim mesma, eu sabia que não estava a dormir. e continuava a apertá-los, como se de um momento para o outro o escuro me fosse entorpecer os sentidos e me levasse para a terra dos sonhos. é preciso sonhar. mas também é preciso tirar os sonhos dos escuro e dar-lhes alguma luz, mesmo que sejam horas de dormir.


as (minhas) mãos
estava a fazer o jantar quando ouvi blá blá blá. vinha de televisão, aquela caixa que entretém e tantas vezes nos rouba tempo. blá blá blá, e não parava, estava distrair-me sem saber porquê, não entendia aquele blá blá blá disconexo, deixei queimar os espargos porque ele dizia blá blá blá e eu pensava que não conseguia bem entender o que blá blá blá queria dizer, ou melhor, que se fosse aquilo que eu pensava que era, como seria, como poderia eu continuar a cozinhar como se nada fosse. a viver como se nada fosse, a cozinhar o jantar. as palavras não se percebiam, blá blá blá e continuava, com uma firmeza ilegítima. estamos todos mortos, pensei, mas o blá blá blá continuava eu estava a enlouquecer porque não entendia nada. desliguei a televisão, as pessoas chegaram, abrimos a garrafa de vinho, fresco, geladinho, e as palavras apareceram, ai que alívio, ai que bom que elas não foram embora, aquelas, aquelas que valem tudo. mas os espargos do jantar foram parar ao caixote do lixo.


(a minha intuição)
quando uma criança se ri de mim, fico desarmada. aconchego-me nesses sorrisinhos estridentes e gritantes e estou absolutamente convencida de que nada me pode afectar. quando eu era criança gostava que me dissessem a verdade, mesmo que fosse a minha verdade, era o que bastava para partir para a próxima brincadeira, a próxima aventura. quando era criança não sabia que essa verdade era a única verdade que vai sempre existir, aquela que trazemos intocável, incorruptível dentro de nós, aquela que não nos faz duvidar. quando eu era criança nada poderia arrancar de mim essas verdades de todos os dias e pelas quais não precisava debater-me. hoje a verdade está sempre a lutar como se tivesse sempre um peso forte, como um braço musculado, a empurrá-la para baixo.


Monday, July 30, 2012

por Ana Rebelo

eu choro se quiser



eyeliner
no ano em que fui viver para Hong Kong assisti a seis casamentos em continentes e países e cidades diferentes. foi uma enorme lição de multiculturalidade. mais uma, porque viver num país que não é o nosso é já por si carregado de emoções cujo único ponto comum é a diversidade. a cerimónia chinesa, por exemplo, exige à noiva três vestidos diferentes, como as apresentadoras dos Globos de Ouro mas sem direito a passagem de modelo. em anos seguintes fui a mais alguns, todos bonitos e românticos, uns mais outros menos. mas em todas as culturas o casamento é sobretudo uma tradição. de amor. (ou do-que-quer-que-seja-que-leva-as-pessoas-a-casar). para mim a sensação é sempre a mesma, a de que estou a viver um momento único. o deles e o meu. porque enquanto tudo acontece há uma parte de mim que está a viajar através dos olhos deles à procura do brilho reflectido nos meus. e sem borrar o sonho.


piercings nas orelhas
depois há as fotografias. também na China os noivos vão três meses antes para um lugar exótico fazer o seu álbum cheio de fotografias que mostram a alegria do casamento em antecipação e com um guarda-roupa que não será o mesmo que vão usar na cerimónia. imortaliza-se um-dos-dias-mais-importantes-da-nossa-vida ainda antes de o ser. e o amor, também se imortalizará nos anos que passarão às fotografias, quando as estiverem a mostrar no computador aos colegas do trabalho, suspirando como-eu-fui-tão-feliz-num-dos-dias-mais-feliz-da-minha-vida? durante a minha viagem o flash não pede autorização para disparar tornando tudo tão mais autêntico, os lábios que se esfregam suavemente para renovar a intensidade do gloss, os cabelos que se compõem quando o vento nos tenta despentear, alisa-se o vestido e esboçam-se os melhores sorrisos. e eles, eles por quem lá fomos e por quem desejamos tudo, ao fundo consigo ouvir os seus corações num silêncio que celebra aquilo que ainda, após horas e horas de tanta partilha, só vão finalmente conseguir dizer quando tudo terminar e estiverem sós. 'eu quero ser livre'. 



lábios cor de rebuçado
estava a reparar em ti e nos teus cabelos brancos. tens tantos, tantos. foi assim de repente, de repente eles apareceram, mesmo em cima, grossos como os fios do esfregão-palha-de-aço. apareceram rapidamente como a espuma de uma onda quando rebenta e não avisa e leva tudo atrás, assim, tantos e que se vêem também nas fotografias. esses, já não podes evitá-los. vão aparecer mais e qualquer dia tens de disfarçá-los 'ah, são sexy, os cabelos brancos', não são nada. ganhaste tanto mais do que isso, lembras-te quando tinhas vinte anos e sonhavas com coisas que agora não têm importância nenhuma tinhas medos que agora seriam apenas piadas de mau-gosto mas eram os teus medos. mas mais impressionante, é impressionante, sabias?, querias ser alguém extraordinário e não sabias que já eras.  sexy é a tua generosidade. 'queres ser livre para quê?'


flor-de-cheiro
bem-me-quer. mal-me-quer e se assim é, não quero nada. e arranco uma pétala atrás da outra, arranco-as todas se for preciso, mas se é assim não quero nada. ela larga-lhe a mão, larga o bouquet e tropeça no véu em direcção àquelas portas pesadas, aquelas por onde, minutos antes, havia entrado, minutos antes havia começado um-dos-dias-mais-felizes-da-sua-vida, tam-tam-taram, tam-tam-taram. e ela corre, corre e vê a luz lá fora e vê as pessoas que se espantam e gritam e choram e ela corre, continua a correr com um sorriso escondido na cara que ainda não sabe explicar, que ainda não pode explicar. antes de desaparecer olha uma última vez para ele, ali diante da nave da igreja, diante de todos os que gritam e choram, diante dela, ele ali diante dela e já sem ser ele, já sem saber quem é ou se alguma vez foi e pensa. 'se amamos e fugimos para ser livres, nunca o seremos porque já estamos presos em nós'.


anéis que são dedos
estava convencida de que tinha copos de champagne. mas confundi tudo com a minha vida anterior, aquela onde já havia copos de champagne que foram também comprados para uma celebração de emergência. o champagne era bom mas este, embora sem copos próprios para beber champagne, era ainda melhor, era doce e fui eu mesma comprá-lo ao supermercado. mas não me lembrei dos copos, ou melhor, lembrei-me mas afinal não foi nesta vida. esta é aquela vida em que a densidade da minha pele já não é a mesma e há zonas localizadas onde pode descair precocemente. mas isso também iria acontecer na vida anterior e fosse qual fosse o champagne. bebêmo-lo em copos nada apropriados mas com uma alegria que não me lembro e sentir antes. acho até mesmo que não me lembro de mais nada depois disso que não desta vida que é agora e como a sinto tão minha. sempre num-dos-dias-mais-importantes-da-minha-vida.


(sempre)
- achas que eu sou feia?
- não és, não senhor.
- então... eu sou linda?...
- tu... és um amor.
- responde-me então porque razão eu vivo só sem ter alguém...
- tu tens o destino da lua, a todos encanta, não é de ninguém.
(2006)







Friday, July 27, 2012

por Ana Rebelo

começar de novo outra vez


olhar
quando era miúda, aí uns seis ou sete anos, a primeira coisa que quis ser foi bombeira. queria salvar vidas, dizia, cheia de um altruísmo que ainda nem sabia que o era nem o que significava, totalmente distraída pelos carros vermelhos e sem a mínima percepção de perigo. adorava carros, sempre fui muito maria-rapaz. depois, ainda no mesmo alinhamento mas já mais menina-que-gosta-de-ir-aos-Porfírios, quis ser juíza. acreditava na justiça, ou pelo menos, naquilo que entendia ser isso e que ainda hoje não sei se entendo bem. sempre as pessoas, sempre as pessoas. quando percebi que para chegar a juíza o caminho era demasiado longo e teórico e eu achava que não ia ter tempo, já achava que não ia ter tempo, finalmente decidi ser comunicadora. gostava de pessoas, sempre as pessoas. gostava de falar com pessoas. na altura, sabia falar mais que escutar e só mais tarde venho aprendendo o poder da comunicação quando se centra mais na escuta activa que nas palavras que tão ansiosamente queremos dizer ao outro. achava que seria uma boa aposta, e convencida de que era isso mesmo, assim me lancei na vida académica, (in)segura de um caminho que não fazia a mais pequena ideia, ainda estava só a começar.



ouvir
a vida é demasiado contemporânea. ouvi esta frase no filme Cosmopolis, que vi esta semana numa das minhas salas de cinema preferidas. guardei-a porque achei que não me tinha dito ainda tudo o que tinha para me dizer. não sei se algum dia conseguirei ver o fim a esta frase e ainda bem. e vim para casa inquieta, os meus olhos brilhavam e eu falava depressa como se estivesse sob o efeito de um psicotrópico qualquer, mas não, era apenas a adrenalina que já conheço tão bem, a dos pensamentos. pensar também é um vício. cheguei cheia de ideias e tinha de pensar em todas elas. sempre fui muito pensadora. começou por ser inconsciente e pueril, achava que todas as coisas que aconteciam mereciam mais de mim. percebi rapidamente que isso era incomportável, como a paixão eterna. agora sei o que todos os pensamentos fazem à nossa cabeça e percebo que nem tudo merece o meu tempo da mesma forma. e a vida tornou-se cada vez mais deste tempo, do tempo que corre deixando para trás tudo e todos. como se as recordações fossem apenas símbolos, evidências de um existencialismo lírico. ontem não conta mais hoje, somos fast-food. temem-se os compromissos com a vida para chegar à conclusão que nunca foi de outra forma. e quando não existe mais forma nenhuma de vivê-la.



falar
aprendi a contar estórias. sem atenção à cronologia e com 'e'. muitos acham que é moda de escrevinhador dos tempos modernos ou quem sabe, uma tentativa de aproximação a um desses escritores mais contemporâneos. mas quem me conhece sabe que sempre foi assim que conheci esta palavra. sempre foi muito clara para mim a diferença entre o que é factual e o que é descrito nas páginas da nossa imaginação. essa clareza rebentava comigo. escrevia coisas do fundo do poço que era a minha alma. escrevia na densidade de quem ainda se descobre e sente tudo, como se a sensibilidade fosse uma alergia de pele, uma reacção inevitável daquilo que não sabia gerir de outra forma. mas descobri que não tem de ser e continuo a ser um paradoxo. até acho que não sou muito boa a contar estórias, perco-me, faço muitos intervalos publicitários e por vezes o espectador muda de canal. e como não gosto de falar para o boneco, é talvez por isso que também escrevo, deixando ao critério de quem lê, o que quer ler e até quando quer ler e de que forma quer ler as minhas estórias com 'e'. se é o caminho que importa, como podemos ser assim tão contemporâneos?




cheirar
fui sempre uma boa aluna. daquelas que estudavam muito e faziam apontamentos que os outros fotocopiavam e liam às portas do anfiteatro antes de entrar para as frequências, e não ficava nada chateada com isso. as pessoas, sempre. o meu sorriso vulnerabilizava-me mas não sabia como dosear essa simpatia que sempre irrita tanta gente e que me saía pelos dentes já tortos mais impecavelmente tratados. tinha assumido o meu primeiro grande compromisso, o de ser-alguém-na-vida. não imaginava o quão definitivo seria este passo, tanto quanto todos os passos que se podem dar na vida - definitivos até um dia. definitivos até à finitude que a própria vida tem. também somos aquilo que fazemos e hoje sei que não quero continuar a fazer o mesmo. porque não sou a mesma pessoa e isso não implica que tudo o que tenha feito não tenha sido fruto de uma tremenda dedicação e empenho. mas não há ambições eternamente imutáveis, profissionais ou pessoais. o que há agora é alguém que se fez pessoa. uma pessoa a querer ser feliz inteira. continuo a ser naturalmente simpática, tenho o mesmo sorriso e cultivo-o. já não o sinto como uma ameaça às portas sociais, simplesmente porque é a minha identidade, o meu património.


tocar
a pele morena e o sorriso aberto induziram em erro. pensei que o aperto de mão firme tinha reforçado a formalidade da ocasião, mas às vezes as pessoas não sabem delimitar espaços quando comunicam. não falo em zona de conforto, essa deve ser usurpada tanto quanto possível e já sabemos que é só assim que vamos lá até onde nunca ninguém imaginou chegar. foi mais pela invasão de uma área protegida, um lugar para onde só convido quem quero. 'como-me-deu-espaço-para-isso'. dei? o meu sorriso não é uma porta sem fechadura. e sem contextualização aparente, desconcertando-me, insistiu em desfazer papeis que existem, distintos. sorri uma vez mais para responder que não entendia onde queria chegar. utilizando subterfúgios e alegações de modernidade, justificou-se. longamente, demasiado. e eu acabei por não responder à pergunta.  não sei se deu conta, mas não respondi porque não-dei-espaço-para-isso. quem desmontou quem, o invasor ou o invadido? cruzei as pernas e reposicionei-me. mas não vim contente. ouvi-me a pensar pela boca de um estranho e retraí-me. normal. mas nunca se sabe o que se esconde por detrás de um sorriso. 


(sentir)
amanhã ganho mais um ano de vida. se quisesse fazer um balanço, porque será que sentimos a necessidade de estar sempre a fazer balanços à medida que a vida passa, e não apenas a vivê-la?, poderia dizer que estou de papo-cheio. nunca me faltou nada na vida, pelo menos, nada do que é importante. nunca me faltaram ideias, nunca me faltou perspectiva. nunca me faltou paixão. também nunca me faltou vontade. aquilo que falta será sempre diferente ao longo do caminho que só ainda poderei tentar adivinhar. e num momento, vou querer coisas diferentes, pessoas diferentes que caminhem ao meu lado, mas não é porque as outras já não importam, não é nada disso. não é mesmo nada disso. há uma verdade imutável nesse percurso que se desenha a lápis de carvão: a de que nos vamos encontrar todos sempre, sempre. mais tarde ou mais cedo.











Friday, July 20, 2012

por Ana Rebelo

a menina dança, sempre




pelos olhos, cegos
encontraram o passarinho ao pé da roda de um carro. estava débil e trouxeram-no para dentro, cuidaram de arranjar uma caixa de cartão onde deixá-lo confortável sobre as folhas de papel higiénico, macias e aquecidas pelo sol que entrava pela janela. no fundo, já todos sabíamos que não íamos poder fazer muito pela vida daquele ser tão pequeno e frágil e já com uma estória tão complicada. sabíamos mas tentámos, tentámos até ao fim e com toda a convicção que o conseguiríamos salvar. cada um com a sua ilusão. o passarinho arfava, eu conseguia ver o coração dele acelerado, mas não era de felicidade, estava a sofrer. um coração bate sempre da mesma maneira, seja por dor ou por prazer as batidas são iguais na força, na cadência, na profundidade. quão enganador e ao mesmo tempo, se o escutarmos bem, ele bate certo. nem sempre quer saber, iludindo-se entre estas duas emoções extremas e tão intensas. mas ele bate certo. 


pelos ouvidos, emprenha-se
a janela estava aberta para o sol que vinha de baixo da rua brilhando nas linhas do eléctrico nº28 que passava em direcção ao Largo do Camões. a janela estava aberta, toda escancarada, mas eu não conseguia ver nada lá para dentro porque estava alta, só uns cortinados que ondulavam com o vento quente e a parede branca. a janela estava aberta e dela saíam sons, vozes graves que em uníssono cantavam. era ópera. eu ouvia muita ópera, eu quando era tu ainda ouvia muita ópera. ai como eu gosto de ópera, tão dramática, tão intensa, a banda sonora perfeita do nosso tu e eu. a música invadiu mais do que a rua, entrou por mim adentro, adentro como um sopro gelado, tão frio que congelou o sangue das minhas veias. paralisei. encostei-me ao muro todo grafitado e deixei-me ali, de olhos fechados com o sol a incidir agora no meu rosto, a queimar-me as bochechas de cor-de-rosa. e escutei, escutei tão bem. desta vez escutei muito bem, as vozes pareciam estar mesmo ali do meu lado, graves mas tão impenetráveis, tão seguras de si. a paz voltou. voltei a ser livre. como um passarinho. 


pela boca, morre-se
perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. depois do desejo, aquele desejo que nos adormece a razão, lentamente. aquele desejo que vem e sabemos ir depressa mas temos de o viver e vive-se o desejo, corremos para o outro lado onde não há oceano, corremos para a porta de desembarque e esperamos, ora sentados ora em pé, olhando quem passa, quem também espera, esperando encontrar tudo isso, sim, tudo isso que desejamos. o sorriso abre-se e deixa transparecer a fragilidade, sim, estou aqui e desejo-te. consomem-se os corpos, consomem-se numa paixão rendida, absoluta, numa paixão vermelha, transpiram os corpos e caem cansados de prazer, ao lado um do outro, ficam deitados a rir para o tecto branco do quarto branco. agarram-se para dormir como se nunca mais se pudessem largar, nunca mais mesmo. e antes de adormecer, antes de adormecer o bafo quente das palavras ouve-se, encostado no pescoço, dizem-se todas as palavras, todas as palavras proibidas são plenas, cheia de significado transformador, determinado. tudo aconteceu quando eu era feliz. 




pelo nariz, sai o ranho
chama-se sinusite. esta coisa de ter ranho na cara toda. e só quem tem poderá entender para além da expressão tão crua e sem beleza nenhuma. quando há dois lados, são mesmo dois lados e não o que mais nos convém. devem cingir-se as posições extremas quando os temas são extremos e não por causa de dúvidas existenciais sobre que camisa vou vestir de manhã para o trabalho ou se vou passar a comer sopa às refeições. há coisas que nunca poderemos entender a menos que as vivamos. não é segredo que isto me faz sofrer. os meus pensamentos ficam duros e eu não quero endurecer. eu sou meiga e doce. eu danço todas as manhãs, eu sorrio todos os dias, eu converso, eu observo. eu tenho coisas para dizer. eu não peço a ninguém que sofra por mim mas reservo-me ao direito de esperar que sim, que alguém algures me ame tanto que sofra por mim. e o sofrimento, quando é um sentimento que não está relacionado com ter o que se quer, é um sentimento muito bonito. é em sofrimento que vamos lá mesmo ao fundo para nos (re)conhecermos. vamos na esperança de encontrar algo bom e que não tenha de ser legitimado pelos outros para sabermos que é bom. geralmente, encontramos. e aprendemos que mesmo não tendo outro remédio que não sofrer já, amanhã saberemos o que fazer para não sofrer da mesma maneira. 


pelas mãos, os dedos
depois tomam-se decisões, tem de ser, tomar decisões faz parte de ser crescido. muitas vezes essas decisões são incompreensíveis para aqueles a quem as consequências são caras. outras vezes, confundem-se egoísmo com o-meu-direito-é-igual-ao-teu. mas tomam-se decisões porque já não há mais o que perdoar. já não há mais o que compreender que não os sinais. um sinal é como o alarme de incêndio: obriga-nos a parar dentro do fumo que não nos deixa enxergar, na tentativa de impedir que as chamas nos consumam. isto não é um ensaio. o passarinho não se mexia, não se mexia. fiz-lhe festas na cabeça, ao de leve, nas asinhas, ao de leve. mas ele continuava ofegante naquela luta final que se confunde com serenidade. demorei a largar, a entender no âmago do seu mais profundo significado, que a busca pela felicidade só pode ser real quando estamos dispostos a deixar ir, a deixar de lado maus hábitos e por vezes, pessoas que foram tudo para nós. e isso tem o seu tempo, claro. não é fácil, mas é necessário. porque o desfecho é inevitável. o passarinho morreu. tudo morre se não existe a coragem de aceitar aquilo que sabemos não ter outro final possível.   


(Tu és Eu)
um mais um é igual a dois. dois que são um, feitos como cada qual, de matérias diferentes. e como um que somos, temos ideias, convicções, formas de olhar as coisas que nem sempre vão coincidir. quando aceitámos que os nossos um seriam dois, aceitámo-nos. com as qualidades e principalmente, com os defeitos. aceitámos ser dois que se respeitam, dois que se amam, dois que crescem um com o outro. para que continuemos a ser dois teremos de ser sempre verdadeiros um com um, ainda que, certamente, haverá alturas em que isso vai ser difícil porque queremos impressionar o outro um com receio de deixarmos de ser dois. e quando isso acontece, a vida desarma-nos e faz com que cheguemos a uma encruzilhada. agora um mais um têm de saber se querem continuar a ser dois. se forem um mais um igual a dois, nem um nem um vão suportar destruir o sonho do outro.


Tuesday, July 10, 2012

por Ana Rebelo

fechada para balanço


perdi um soutien e umas cuecas
as semanas acabam e começam, nunca nenhum dia é igual ao outro. não sei porquê, mas isto hoje soa-me muito bem, hoje como quem diz 'nos dias que correm'. eu pensava que era realmente uma nova oportunidade, sabem, aquelas coisas que nunca acontecem e que se acontecem é porque how-stupidly-lucky-we-are-so-lets-not-fuck-this-up-again. mas isso não tem de significar que vá ser realmente desta-vez-é-mesmo. até pode não ser isso e na verdade, quase nunca é, na verdade tudo não passa de whishful thinking e que mal há nisso, todos sonhamos que um dia vamos ser algo que ainda não somos. mas os sonhos plantam-se e regam-se e aninham-se em nós até poderem co-existir com a nossa realidade. enquanto me despia ele olhava para o meu corpo através do seu, querendo consumir-se nele, querendo-me. e eu pensava na fragilidade disto tudo. às vezes estas oportunidades que parecem novas são mesmo velhas no seu significado mais primário. o amor nem sempre é tudo, nem acredito que estou a dizer isto mas é verdade que hoje, nos dias que correm, é preciso mais do que o amor sentido pelo outro. é preciso o amor dentro de nós.


o espelho que caiu e não se partiu
agora-é-tudo-ou-nada. às vezes a vida quer-se com esta practicabilidade, é fundamental que assim seja. se não tivermos a coragem de assumir os nossos medos e mesmo assim, enfrentá-los, só nos estaremos a afastar mais de quem somos. quando começamos a racionalizar tudo é porque já estamos perdidos, totalmente submersos pelo lodo que só nos empurra ainda mais para baixo. não me lembro de ter tomado qualquer decisão importante na minha vida que não tivesse sido instigada pelo medo. sempre vivi assim, aliás, desconheço outra forma de vida terrena. está na hora, vai. vai lá encontrar o teu lugar seguro que não seja em mim, vai ao seu encontro como eu fui ao encontro do meu, sem resistência. eu não posso ajudar, eu não posso desamar e voltar a amar e depois sentir que não entendes que me dás mais um corte no coração quando me rejeitas rejeitando os frutos do nosso amor mais altruísta. não entendes. é que eu já tinha juntado os cacos e agora eles são um espelho de talha dourada que está pendurado na parede, para o qual olho todos os dias e todos os dias me faz lembrar que está na hora de te deixar partir. 


fiquei doente, de cama
com uma bela febre-dos-fenos. com direito a uma pedrada de anti-histamínicos e nasomed e ar para respirar saído de um aerosol. é horrível precisar de ir buscar ar a um tubinho quando o ar em volta é rarefeito. o meu corpo ressentiu-se, primeiro ficou dormente e branco, não interessa se tinha estado a tomar sol e a minha pele estava sensível. o meu corpo estava a ressacar do bliss dos últimos dias. assim de repente tudo tinha passado, todas as palavras e gestos e intenções e mudanças - passaram. foi como se nada tivesse acontecido, mas aconteceu porque o meu corpo acusou e faliu. não havia nada a fazer e depois de um bom banho quente caí na cama num delírio purgatório, os suores eram fortes e a minha testa estava quente e os meus olhos, húmidos. não, não foi de chorar. não chorei. não chorei porque não fazia sentido. era como se eu fosse um barco que estivesse a navegar em águas calmas e de repente a tempestade atingia-me e eu tinha de recorrer à bússula e cartas marítimas e içar as velas para sobrevivê-la. e assim fiz, tão rapidamente quanto a previsibilidade do que me assolou.


tudo às claras
e fé em Deus. ou nas energias eólicas. ou nos beijos debaixo do azevinho à meia-noite. ou nas escadas e nos gatos pretos. ou nas figas. ou nas pragas rogadas aos céus em dias de trovoada. ou no álcool e na droga ilegal. ou no sexo. ou nos anti-depressivos. estou-me absolutamente nas tintas para o quê, desde que sim. diz uns belos de uns palavrões, dá uma boas gargalhadas, goza com as roupas das pessoas no metro, retribui o sorriso ao rapaz dos olhos-verdes que estava hoje no café. faças o que fizeres, o que quer que seja, agora a esperança é o asset mais importante do teu portfólio de carácter. se não tens, arranja, se não sabes como, aprende. porque vais ter de continuar a levantar-te todos os dias e ninguém vai ser brando contigo, os carros vão continuar a poluir a camada de ozono, a estupidez vai continuar a dominar o povo e tu firme, aí, firme como uma barra de ferro. porque não há nada mais irritante do que deixarmos que o zumbido de uma mosca, uma só, nos impeça de dormir uma boa noite de sono. ou então uma alergia ao sol que nos impeça de aproveitar o verão. melhor ainda: orgulharmo-nos das palmas surdas que ecoam na nossa cabeça ante este belo espectáculo que são os nossos dias.


cliente por dente
gosto de honestidade. e gosto mais ainda de honestidade feita com assertividade. às vezes sou dura a dizer as coisas, dizem que sim, mas é a minha expressão determinada apenas a transmitir que é a sério, há coisas que devem ser levadas muito a sério, como o compromisso. pode ser chegar a horas, ser pontual. ou então pagar à empregada no fim do mês. e tanto mais havia para dizer mas só tenho tempo para relembrar que um compromisso dá-se quando as duas partes assumem no empreendimento de qualquer coisa, num dado momento que é também comum. ninguém está a fazer um favor a ninguém. o desafio é mútuo. os ganhos e as perdas, também. o que é que há de tão difícil de entender nisto? pode-se quebrar um compromisso, pode, é claro. mas assumindo todas as consequências, de cabeça erguida. de convicção içada, como as bandeiras. quem não sabe honrar um compromisso não se pode dar ao respeito. e mesmo assim, cá continuamos a levar com isto porque ninguém parece ter tomates para prender essas pessoas por fazerem da vida dos outros um espectáculo de marionetas de baixo orçamento.


(hérnia do hiato)
conheço um mundo de gente insatisfeita com as suas vidas, actualmente. na verdade, o panorama não é muito favorável ao optimismo, mas não devem ser os factores externos a condicionar a nossa forma de digerir as coisas. há muitas pessoas desempregadas mas há outras que estando empregadas, não têm grandes perspectivas. umas dizem às outras (ou a si próprias) que só porque têm trabalho têm de contentar-se e dar-se por felizes 'tendo em conta que'. entendo o princípio básico de sobrevivência mas teremos de ser todos mediocres e calar a vontade de lutar por mais? não será esta a verdadeira crise, aquela que é abafada em nós? é como a auto-motivação, esse conceito bonito que inventaram já no final do século XX que tão somente quer dizer desresponsabilização por quem de dever. está tudo trocado e depois o corpo é que paga, já dizia quem pagou pelo não-conformismo, e pagou bem. 

Monday, July 2, 2012

por Ana Rebelo

mais uma volta no carrossel




olho espreitador
o mundo é redondo. foi o que me disse a minha amiga chinesa na despedida, obrigadas a separarmo-nos logo ali, junto à entrada para controle de passaportes. deixávamo-nos cheias de lembranças que ainda não o eram, sabíamos que provavelmente não voltaríamos a ver-nos e que nem sempre isso quer dizer menos que uma amizade intensa a combinar com o que foi um dos períodos mais marcantes da minha vida. senti no abraço dela a força daquelas palavras, mas julgo só agora começar a entender a abrangência do seu significado. de Hong Kong a Lisboa são tantos quilómetros e água e diferenças horárias que marcam toda uma lonjura imutável, uma distância entre o presente e um futuro sem a tentação de parar no meio. mas existem sempre estes recantos onde nos encontramos e encontramos pessoas que nos acompanham pelo tempo necessário - necessário, nem sempre o tempo que tantas vezes gostaríamos. e tal como as pessoas, cada take da nossa vida se vai alinhando e reinventando para dar lugar a outras cruzadas, sem que tenhamos a noção de que o mundo nunca poderia parar para sairmos ou congelar numa fracção de tempo.



ouvido altifalante
nos aeroportos há vozes que vêm do céu. são vozes que nos alertam para qualquer coisa importante, sobretudo quando andamos distraídos. vozes que nos indicam onde é o próximo embarque e que sejamos pacientes e esperemos pela nossa vez. vozes que nos fazem saltar o coração porque anunciam uma chegada há muito desejada, mesmo se a sensação é a de estar em casa em quem chega. gosto muito de partidas e de regressos porque é entre estes dois extremos que reside o melhor de tudo e aquilo que têm em comum: o sorriso aberto sem sabor a distância ou ausência, sem espaço nem lugar, sem mágoa ou desilusão, apenas os abraços apertados que sucedem ao encontro dos olhares, do momento, daquele momento único e intransmissível. é aí que está a felicidade, é sempre aí que ela se renova, como se todas as coisas importantes da vida só pudessem começar assim.


boca(dillo)
pudera eu gritar todos os pensamentos que se cruzam na minha cabeça, que me confundem e por segundos me fazem esquecer de quem sou, em quem me tornei. sou a mesma, sou sempre a mesma mas com mais traços desenhados, mais definições, apenas outras dúvidas e sobretudo, outra forma de lidar com elas. sou a mesma na origem mas que se transforma pelo presente, pela maneira de estar, de pensar e de agir. não há mais completa sensação de bem-estar do que viver esse crescimento, mesmo que por vezes na revelia de estarmos bem connosco quando mais ninguém está. e isso não quer dizer que éramos pior do que somos, fico tão triste quando alguém diz isso, como se fosse possível aqui ter chegado sem ser pelo meu próprio pé.


nariz sisudo
eu sei que há males que vêm por bem e que nada acontece por acaso e essas coisas todas. eu sei, até porque tenho tanto de bem que veio desses males que todos os dias me fazem lembrar que nada, nunca ou quase nunca, é à primeira. e eu vivo isso todos os dias, grata. mas também há outros em que não posso deixar passar tudo assim, como se não importasse nada, como se não tivesse acontecido nada. a princípio talvez sim, todos somos obrigados a aprender como controlar emoções, a ser politicamente correctos, a calar a angústia e a frustração para que nos virem as costas. no entanto, mesmo convencidos de que somos imunes a tudo nem sempre conseguimos controlar o touro que corre desenfreado em direcção a nós, sedento por sangue. 



mãos suaves
sorte ou azar. samba ou fado. tudo é paradoxal e apenas sustentável por sê-lo. no entanto, há quem diga que estamos condenados a ficar sempre na tentativa em vez de liderarmos. sim, também falo de futebol mas é muito mais do que isso. falo de nunca nos darmos uma oportunidade para viver o melhor dos dois mundos, para confiar mesmo se não entendemos o porquê naquele momento imediato. sim, às vezes é mesmo uma questão de sorte ou azar, de ganhar ou perder. mas questionar a vontade, a coragem, o empenho e a infindável crença na capacidade de sonhar que se conseguiu entre uma hipótese e outra, isso é que não.


(sinal de alarme)
preciso de um café com gelo e limão. tenho a cabeça a estalar e como sempre, evito os comprimidos, talvez com receio de ficar sem cabeça, ainda mais do que quando a dor me ataca também as ideias. e lá vem a maldita da insegurança, que o café faça parar a minha cabeça e me devolva a tranquilidade do que o coração sente. não há nada que temer quando o coração quer, pois não?




Tuesday, June 26, 2012

por Ana Rebelo

teletransporte



ninguém tem 26 anos.
dizia hoje o locutor de rádio já não me recordo a propósito de quê. ele mesmo já teve 26 anos, eu lembro-me!, a mesma voz que oiço todas as manhãs desde sempre, a acompanhar o meu ritual de início de dia. e ele lembra-se também, todos nos lembramos da passagem do tempo pelas nossas vidas até porque sempre que nos olhamos os seus sinais são evidentes e inevitáveis. e com isto não falo apenas nos sinais visíveis, tão enganadores, e sim daqueles que estão subentendidos na nossa personalidade, nas nossas acções e comportamentos. eu estou proibida de fazer uma afirmação destas no local de trabalho sob pena de ser interpretada como a velha-do-restelo, já que 90% das pessoas que me rodeiam diariamente tem esta média de idades. é a primeira vez que sou a-mais-velha e talvez quando era a-mais-nova também achasse que a idade nunca é tema. quando andamos pela casa dos vinte's parece que a vida é uma realidade fora de nós e não temos absolutamente consciência nenhuma de que não sabemos quem somos e ainda menos, de que o tempo nunca vai ser suficiente. e se houvesse uma linha a dividir o que nos separa do que julgamos que vamos ser e querer do que realmente seremos e quereremos, achar-nos-íamos os maiores saudosistas e especialmente chatos e provavelmente infelizes, porque já só teremos amigos avós ou que jogam golfe ou que dizem 'ninguém tem 26 anos'.


relax, don't do it.
se estiveres em casa e tiveres uma série de tarefas para fazer, tais como estender a roupa, apanhar a que já está seca, pôr mais uma máquina a lavar, separar o lixo para a reciclagem, arrumar a roupa da semana que ficou em monte em cima do cabide e da cadeira do quarto, passar o biquini por água e sabão e estendê-lo, tirar os pelos das pernas ou mudar a roupa de verão para o armário mais próximo, pensa duas vezes antes de passares o dia deitada no sofá a fazer zapping que nem uma louca, sem qualquer interesse que não passar pelos canais até gastar o botão de borracha do comando. não sei se é uma coisa astrológica, metafísica ou até mesmo viral, mas o mês que passou foi de alguma procrastinação. e quanto mais adiamos certas coisas, menos coragem vamos tendo para enfrentá-las, acreditem, não fosse o monte ter-se transformado numa montanha e depois ser necessário recorrer a serviços externos e que envergonham qualquer mulher de 30 anos (leia-se, à experiência organizacional e incondicional da eterna disponibilidade maternal). mas quando finalmente desbloqueamos e enfrentamos a vida, voltamos a acordar na manhã seguinte com a mesma energia de uma miúda de vinte-e-tal-anos depois de uma noitada frenética e bem regada e um menu do McDonald's ao pequeno-almoço.



não havia necessidade
sem querer ser generalista/ sexista mas tendo a noção de que é a primeira coisa que me vão chamar, há algo de assustadoramente básico nos homens que por vezes me exaspera. como a sua certeza do que nós mulheres queremos deles, assim sem passar sequer pela casa da partida. ou então, de que se lhes dermos um chuto e nunca mais os quisermos ver à frente é porque estamos muito magoadas e tristes e amargas porque eles, sim, eles não nos puderam dar o que nós queríamos. para quem passa a vida a queixar-se de que não fazem a mais pequena ideia do que as mulheres querem, parecem sempre saber bastante acerca do assunto. a ideia de que deixam de acrescentar qualquer valor à nossa vida é-lhes totalmente estranha, até absurda, e é assim que recomeçam os sms enganados, as tentativas kamikaze "vamos ser amigos sem sexo", as viagens só de ida ao outro lado do mundo, e a humildade que nunca até aí tinham realmente provado em actos vem toda ao de cima, como se tivesse estado nas profundezas à espera de ser descoberta numa grande expedição para a qual não tiveram tempo e agora já têm. dá para perceber que, apesar de tudo, quem sabe melhor o que quer para si são mesmo as mulheres? eu chamo-lhes os "wanna be", aquele género que se acha o salvador da velha glória feminina mas que no fundo quer é que o salvem a ele. 


secánevassefaziassecáski.
tenho uma amiga brasileira que diz que nós, as europeias, temos "inverno chique". para ela, o facto de poder usar um cachecol (de pano) em volta do pescoço é a alegria das temperaturas mínimas de aí uns 21º graus e motivo para ir ao shopping renovar o guarda-roupa (o melhor motivo). e nós aqui em Portugal a desejar pelo calor que vem aos poucos, esperando que não tenha sido alienado como os subsídios de férias. a noite mais curta do ano e que antecede à chegada do dia mais longo foi cheia de expectativa mas antes de inaugurarmos o verão ainda tivémos de sentir o peso da chuva nos ombros descobertos. se não houvesse a expectativa, não havia decepção, suportaríamos melhor as tempestades. suportaríamos? e a desilusão transformar-se-ia em quê, em algo vácuo e sem significado? mas, e estar à espera de tudo o que nos irá acontecer não seria absolutamente entediante e desmotivador? a perspectiva de que a dimensão do sonho é proporcional à profundidade da queda é como viver numa outra realidade para a qual não existe volta possível. e aí, é como se perdêssemos o norte, a capacidade de sentir o arrepio de frio e o frisson do calor.


this is your captain speaking.
num destes dias o meu carro foi a reboque pela primeira vez e por coincidência ou não, Portugal perdeu com a Dinamarca. a infracção custou-me mais do que os €120 que tive de pagar para recuperar o meu carrito, custou-me também aqueles primeiros segundos em que a possibilidade de nunca mais o ver ou encontrá-lo irremediavelmente desfeito, ou até mesmo de ser irrecuperável e perdido para sempre nas mãos de outro, foi a coisa mais difícil de encarar. digo-vos já que não foi pacífico. todos nós conhecemos essa desagradável sensação que é ter a certeza de que deixámos qualquer coisa, pensando-a segura, e que quando voltamos para a recuperar ela já não está lá e não fazemos a mínima ideia de como isso aconteceu ou como o permitimos. por onde começar? ai-se-eu-pudesse-voltar-atrás ou e-agora? ou nem-que-tenha-de-dar-outra-volta-ao-mundo. há sempre como começar qualquer coisa que quisermos mesmo se já não é a primeira vez que tentamos. basta estar atento à voz inconveniente cá dentro, e deixar que nos lembre o que nos move e o que subestimámos ou que verdades absolutas deixaram de o ser. depois, simplesmente entregar tudo, tudo mesmo, despindo-nos da pretensão de querer que seja tudo igual ou que o outro se esqueceu da preocupação de poder vir a acontecer de novo. 




(os olhos são o espelho da alma.) 
pois são. e quando eu não falo nem sempre é porque não tenho nada para dizer e se olhares para os meus olhos vais perceber (quase) tudo. é que nem sempre as palavras devem sair pela boca e sim ficar deitadas até conseguirem ser entendidas como deve-de-ser. e no entretanto, aguardam. deixam que outras coisas falem, outras intenções se manifestem. esperar nem sempre significa a vinda do milagre, e sim tão somente, a oportunidade de o protagonizarmos. 




Monday, June 18, 2012

por Ana Rebelo

a-saca-rolhas




olho-de-corno
não entendo nada de futebol nem faço por entender. custa-me o raciocínio quase matemático que obriga a conhecer as regras do jogo para saber quantos pontos faltam e quantas vezes temos de jogar e ganhar e com que país menos o jogador que levou duas faltas e já não pode jogar (que canseira). mas dei-me conta da polémica em redor da prestação do CR no último jogo da Selecção com a Dinamarca. ao que parece, o grande e incomparável CR a quem tecem os maiores elogios enquanto dono da bola, não foi dono de coisa nenhuma. eu não vi o jogo mas ia vendo os posts no facebook rolando como cabeças, a pedir que o tirassem de campo, oh-meu-Deus, pensei, que terá feito o puto maravilha para tamanho desprezo colectivo? ocorreu-me de imediato a velha máxima 'depressa-se-passa-de-bestial-a-besta' (vice-versa já é mais raro), pois este episódio é claramente um caso de amor-ódio-inflamado, bem à moda dos muitos treinadores de bancada que temos por aí. independentemente da prestação do CR, a qual não tenho competência para avaliar a não ser a parte óbvia dos golos (já que estes só acontecem se a bola que gira entrar na baliza, aquela rede grande que existe em cada uma das extremidades do campo e de preferência, na contrária à nossa), senti-me indignada com o chorrilho de insultos dirigidos a um dos melhores jogadores do mundo (todos dizem que sim e eu acredito). se é verdade que dos ídolos só esperamos a perfeição, a intangibilidade, também é verdade que somos nós quem os desumaniza. e depois, tão depressa damos tudo como tiramos tudo.


orelhas-de-burro
às vezes sinto que não sou capaz de gerir tanta vida ao mesmo tempo e por isso, coloco-me o peso da responsabilidade. não consigo ir a todos os lados, estar com todas as pessoas, fazer todas as coisas que quero. sou imperfeita, embora a perfeição 'manienta' me persiga e também eu me já me escudei nos outros para justificar o meu fracasso. no fundo, é tentador não termos de arcar com as consequências das decisões que tomamos. e lembra-me novamente o CR (e irrita-me isso que eu até nem ligo nada ao futebol e nem acho nada do CR), que ao sentir-se pressionado se defendeu da pior forma, é certo, mas é tão fácil sermos juízes do outro quando só pensamos nos milhões que ele ganha. e toma lá novamente CR, afinal não és um Deus e sim um miúdo de 20-e-tal-anos que ganha milhões. eu também gostava de ganhar os millhões que o CR ganha, mas eu não nasci com o talento com que ele nasceu, tampouco existirão muitos que o tenham desenvolvido e trabalhado como ele. é certo que não houve um golo sequer, que o raio-do-garoto se escondeu nas costas de outro, mas e Portugal ganhou, não ganhou? não é isso que está em causa aqui? vêem, como eu não entendo nada de futebol?...


boca-de-sapo
outra coisa da qual me lembrei com esta azáfama toda do futebol (não eram as séries e as novelas que embruteciam?...), foi dos dez estádios novos que foram construídos em Portugal algures num tempo já tão longínquo quando estes estádios que nem sei bem onde ficam.dez estádios, dez, dez, dez (estou a embrutecer). lembro-me de um que era ali para os lados do Algarve, sei que o vi da janela do carro quando viajava, imponente e brilhante sob os raios de sol de fim de tarde. não faço ideia de qual destes dez, dez, dez era mas lembro-me também de me questionar acerca de onde viriam as pessoas, o público, já que parecia deixado ao acaso numa planície esquecida. nunca mais ouvi falar de nenhum destes estádios de futebol, dez, dez, dez. talvez se tenham transformado em pavilhões gimno-desportivos ou em locais preferenciais para os saraus das escolas dos arredores. é realmente fantástica a criatividade dos nossos dirigentes. e para o provar, teria sido estruturante para o país realizar estes fracassos sem nos fazer engolir sapos atrás de sapos, tentando que acreditemos que só assim podemos sair ilesos deste campeonato de meio-campo.


nariz-de-pau
ontem terminou a 8ª temporada de Anatomia de Grey. eu sempre gostei de séries de médicos, talvez por ter pavor de hospitais, muito pavor mesmo, e na televisão tudo me parecer tão bonitinho e competente e saneado. estava feliz por estar em casa, instalada no meu sofá favorito para ver o último episódio mas logo comecei a arrepender-me, porque além de ter sido assim qualquer coisa do género trágico-fatalista-surreal, ainda fiquei com o sabor amargo de não saber o que realmente aconteceu até à próxima temporada que deve ser só daqui a não-sei-quanto-tempo. que mania esta de finais interrompidos e sequelas infindáveis, ó-srs-produtores, ainda não perceberam que tudo tem que ter um fim ou correm o risco do McDreamy deixar de nos dar pica, a Meredith parecer uma sopeira e a Yang uma cabra sem coração? tudo o que tem um princípio sempre tem de ter um fim. é certo que podem surgir novos e inesperados capítulos após um grande lapso de tempo, não é só nas séries que as coisas bonitas acontecem não fossem elas inspiradas na realidade, mas isso é só porque ainda não era o fim. outras vezes as sequelas só servem para nos encher de esperanças vãs ou iludir-nos com a infinitude de um amor que não soubemos corresponder. mas para o bem ou para o mal há sempre uma verdade inequívoca que só se confirma através da libertação, só assim percebendo se é suposto ser ou não ser. the end ou to be continued?


mãos-de-tesoura
sou vaidosa o suficiente para me sujeitar às torturas da manicure. geralmente, gosto de usar as unhas pintadas de cores fortes, outras vezes peço por cores mais quentes e que me façam lembrar a leveza com que se vive debaixo do sol. do que eu gosto mesmo é de arranjar os pés, adoro pés bonitos e também adoro o creme e as massagens e a água e esta semana aproveitei para prepará-los para vestir o tom dourado do verão. é sempre um tempo que tiramos para nós e em que aproveito para por a leitura-cor-de-rosa em dia. mas desta vez estive à conversa com a menina-manicure e é maravilhoso as pessoas que se cruzam na nossa vida, vindas de sítios tão diferentes e com estórias tão parecidas com a nossa. ela tinha os olhos grandes, de quem encerra um coração e uma estória igualmente grande. foi com generosidade que recebi das suas palavras, como se me estivesse, sem saber, a transmitir uma mensagem importante. como se não fosse em vão estar a gastar tempo num prazer tão indolente. ela parecia ter as respostas todas, aquelas para as quais eu nem procurei ainda as perguntas ou então me distraio esperando encontrar assim, esbarrando nestes pequenos sinais, aquilo que o meu coração sabe desde sempre.


(intuição-de-coração)
diz-se que criatividade é não ter medo de falhar. entendo que todas as coisas mais (im)perfeitas que fazemos são aquelas que vêm de actos espontâneos, de um pré-vazio de não sabermos o que vai acontecer, de uma incerteza que não incomoda e sim nos faz sentir vivos. entendo que nem todos podemos ser artistas, jogadores, ídolos, escritores, porque a maioria de nós não consegue ultrapassar esse medo, essa vertigem do fracasso e do julgamento dos outros. a maioria de nós não consegue tantas vezes ser quem é apenas por receio de não ser quem os outros esperam. é uma cruzada, esta. mas à medida que o caminho se desenha, há uma compensação enorme na honestidade de nos mostrarmos assim, frágeis, débeis, com medo, pois só perante a verdade de quem somos conseguimos afiar os dentes e ter a coragem de viver como sempre sonhámos.