Tuesday, September 25, 2012

por Ana Rebelo

nervos em frança


terçolho
estou atrasada na escrita, eu sei. permiti-me a isso, eu escrevo sempre em cima da pressão de tudo o que me acontece ou que gostaria que acontecesse ou que não aconteceu de todo. não se iludam, nem sempre as palavras são reais, sequer tão reais quanto aquilo que quem as lê deseja. ou quem as escreve, iludidas. e pronunciá-las então, há quem não lhes confira qualquer dignidade só porque são fáceis de dizer. mas tudo acaba por dar certo, para quê preocupar-me? é assim a vida, como as palavras, acabam por sair e ter significado para alguém em algum momento, fazendo a vida acontecer. por vezes há um bloqueio inevitável que se entrepõe entre o deve-e-o-haver e que inviabiliza um resultado imediato. mas que não invalida que não vá ser bom. talvez este seja um desses casos.

otite
depois tem sido a semana toda nisto. a t(e)su, o passos coelho, a t(e)su, a austeridade, a t(e)su, as mamas da Kate. proliferam os post zangados no facebook, repetem-se os cabeçalhos dos jornais e os separadores do telejornal. mais do que a t(e)su, o passos coelho, a austeridade e as mamas da Kate (umas mamas perfeitamente normais), acho que estamos a entrar num modo repeat-after-me como se a cassete nos fizesse sentir melhor. "Worry is like a rocking chair, it gives you something to do but get's you nowwhere." a não ser ao que parece que é mas não é. nunca é e não vale a pena tentar entrar onde não somos chamados mesmo que assim nos possa parecer, os sentidos também se enganam, então para quê preocupar-me? se ninguém se importar com estas palavras elas perder-se-ão no seu significado.

língua comprida-conversa da tanga
time-is-over-rated. há-de haver tempo dependendo do que queremos dele. é mesmo a vontade que conta. o tempo só nos gere quando deixamos, invariavelmente, e se deixamos, seremos os seus eternos escravos mais fieis (1º paradoxo). tenho tentado prioritizar, pensar no sonho, planear o sonho, viver o sonho. seria bom que tudo funcionasse como num cronograma, com datas de lançamento e as várias fases e hora certa para go live. mas normalmente os sonhos não acontecem assim, sem algum imprevisto, sem algum risco e sobretudo, sem a mínima ideia se alguma vez vamos acordar para ele. dá tanto trabalho sonhar!... e é quase tão perigoso tentar evitá-lo quanto inevitável que ele aconteça (2º paradoxo).

garganta
ela vai à janela e penteia-se. é loira. penteia os cabelos, não muito compridos, penteia e penteia, frenética, de cabeça para baixo e sem se importar com quem possa estar a ver, como eu. e continua, penteia-se como se os cabelos fossem nascer mais depressa, quem sabe é por isso mesmo. ela vai para a janela e deixa que caiam os cabelos que a escova já não agarra, as ideias que a cabeça já não cultiva. as ideias e os quereres que já não são quereres, são as mentiras, as mágoas, as vezes que forem, e a escova penteia-lhe os cabelos como se nada estivesse perdido. engasga-se na sua própria generosidade, convencendo-se de que nunca mais lhe tocarão num fio de cabelo.

bofetada-sem-mão
já vai tarde, este meu atraso. esta minha falha. este meu incumprimento. escrever tem destas coisas e como eu já disse atrás, se ainda estás aí, há alturas em que há vida que tem de ser vivida sem tempo para escrevê-la primeiro. é hora de tirar a maquilhagem. primeiro, passo o sabão e depois o tónico e só depois aquele creme que ajuda a prevenir as rugas. e quando acordar amanhã, a minha pele vai parecer a de um bebé, como se tivesse acabado de chegar ao mundo e que não faz a mais pequena ideia do que se vai passar a seguir.

(o buraco da ansiedade)
"This blinding kiss breaths helium into my heart
and erases the embraces of all other lovers
with a kiss...(...)

in 'Helium Reprise', Orton/Watchel/Waits 1999

Monday, September 17, 2012

por Ana Rebelo

push-the-button


os olhos são setas
sempre ouvi dizer que no-pain-no-gain. sim, estamos em crise, sim, temos de estar agradecidos pelo que temos. não, não temos de nos conformar com a injustiça, com um trabalho precário, com quem não nos reconhece, com quem não sabe gerir, com a incompetência de tantos que se dizem empreendedores, com falsas oportunidades, com interesses escondidos atrás de boas intenções. não. recuso-me a acordar com o pensamento "lá-vou-eu-para-aquele-sítio-ignóbil", todas as manhãs sem falhar uma vezes sem conta, depois de ter passado a noite a sonhar com isso, porra, não. e não me venham com a conversa das responsabilidades e das obrigações, também as tenho. todos temos responsabilidades e obrigações. sejamos francos, honestos connosco em primeiro lugar, para que possamos estar prontos para lutar. tenhamos a coragem que agora é precisa para nos libertarmos do servilismo, do medo que nos querem incutir a cada anúncio, a cada notícia, para depois nos entorpecerem com as manhãs inúteis da TVI. cuidado. as promessas são de uma grande responsabilidade. mas as acções, essas, são ainda mais determinantes.

gritos que se libertam
atrás de mim virá quem bom de mim fará, a vida mostra-nos que é sempre assim, sempre assim com honrosas excepções sendo que o mundo é feito dessas excepções. corroem-me as verdades imutáveis apenas porque o seu carácter é tão cómodo para quem faz o mundo girar. nós, que estamos no bastidores, aquele lugar onde estão as cordas que fazem abrir a cortina, que deixam voar o artista, que mudam o cenário quando está na hora de começar o próximo acto, logo nós, no sítio mais importante, no sítio onde tudo se passa porque o resultado nunca - nunca, ouviram? - seria igual sem todos, nós todos que estamos lá atrás. seremos assim tão poucos que não podemos ser tantos quanto a vontade de sermos mais?  eu vi. eu vi a malta que saiu à rua. e era muita gente, muita gente aos milhares. e não foi para ir ao shopping.

vozes que se alevantam
não sei entender de política o suficiente para comentá-la. mas oiço e leio e observo e interpreto. sei de pessoas, sei. sei que estamos sempre prontos a atirar a primeira pedra e logo nos esquecemos dos nossos telhados. também sei que a nossa memória é selectiva o bastante para baralhar a cronologia, os factos, o quê? o quem? considero-me uma privilegiada. faço parte desta massa que se levanta, que se revolta contra as injustiças, o fundamentalismo, os falsos burgueses, as mentalidades pobres, os esquerdas que passam à direita e vice-versa, os quintais, os pelourinhos, o estou-me-a-cagar, já-não-me-serve, vale-tudo-para-salvar-o-meu-couro. temos andado a jogar ao Monopólio negociando com as casas dos outros e por esta altura nem sei como é que o Rossio ainda não foi vendido a um grupo chinês qualquer. é verdade que a capacidade associativa por si só não vai resolver tudo, mas as pessoas como eu e como tu estão finalmente a unir-se em volta do que é importante.

cheiros que se colam no nariz
me Tarzan, you Jane. dantes era tudo tão mais simples. dantes não havia listas de requisitos ou fórmulas definidas dos sete-passos-essenciais-para-um- primeiro-encontro-com-boas-perspectivas-de-passar-ao-segundo. gosto da palavra dantes porque me faz sentir numa outra época, como na telenovela da Gabriela que agora me traz de volta os tempos em que a minha Mãe via todos os episódios comigo sentada ao colo. o meu dantes é mais recente, de uma época em que ainda éramos romanticamente simples, afectivamente menos exigentes. talvez porque éramos mais livres. éramos mais conscientes de que a vida sem determinados riscos não sabe a viver. o amor também precisa de uma revolução de cravos.

mãos que enrolam num abraço
escolho o silêncio do mar ao longe, sentada ao teu lado num grão de areia. escolho o silêncio não porque esteja cansada da tua voz ou surda para falar mas porque estares ao meu lado é por si só a ausência de silêncio. escolho estar sentada ao teu lado enquanto remexes na areia, enquanto me espreitas de soslaio tentando interpretar-me, pensando que não te vejo mas sabendo que sim, que espreitas ao meu silêncio. escolho que não quero estar em mais lado nenhum naquele momento. naquele momento em que o mar se encontra próximo e o teu cheiro vem no vento. escolho que são estes silêncios que me acolhem num lugar que ainda não descobri. escolho ser quem sou, assim, vulnerável perante ti. escolho o desconhecido (que não és tu). escolho viver.

(a máquina da verdade)
estou distraída. a partir do momento em que o escrevo, tudo se torna mais real.

Tuesday, September 11, 2012

por Ana Rebelo

rentrée


os (meus) olhos
regressava de Cascais pela Marginal. ao olhar o grande Atlântico com reflexos prateados vindos do sol incandescente, tão grande, tão bonito, pensava porque é que a nossa Marginal é tão diferente do calçadão do Rio de Janeiro, com aquela pedra branca e cinzenta herdada de Portugal, de Portugal, aquele país que tem uma calçada tão bonita em pedra branca e cinzenta de que todos falam no Rio de Janeiro. aquele canto da Europa tão especial, de língua bonita, é assim que eles dizem. os passos na Marginal não são feitos de pedras brancas e cinzentas e o passeio por vezes à estreito e é uma via um pouco mais tranquila que a Vieira Souto e tem vivendas e prédios bonitos como os do Leblon ao Arpoador. é verdade que poucas capitais se igualam em esplendor à paisagem luxuriante do Rio. mesmo sendo as praias do calçadão do Rio de Janeiro bastante comuns, mesmo sendo uma cidade tão movimentada, mesmo sendo tão poluída, mesmo sendo criminosa. a nossa Marginal nunca foi tão amada assim.


os (meus) ouvidos

não me doeu nada. apenas o orgulho e essas são as feridas que melhor se curam. arranquei o coração e fui implacável, de uma forma que me fez sentir que o destino sou eu quem o traço, com riscos de giz no chão, é certo, mas um a um sou eu quem os desenha. riscos que podem - e eu sei que vão, sempre - deslizar numa plataforma escorregadia de tempos que não controlo, de ideais que não partilho, de gente que me atropela. mas a minha mente, quem eu sou, no que penso, eu controlo. é a única coisa que posso controlar. a nossa Marginal não é celebrada pela música quente que faz arder o coração. mas eu vinha assim, fixada neste um pensamento que não sei bem porque insistia. talvez porque só quando me transporto para outro lugar é que sei que estou em casa. e não há nada que mais ame do que a minha casa, mesmo quando tem rachas nas paredes e pode cair a qualquer momento.


a (minha) boca
quem disse que o tempo foge, que o tempo não chega, que não conseguimos ganhar-lhe? eu ganhei, eu deixei-me levar por ele, cega e agarrei-o e ganhei mais uma hora por dia durante quinze dias. durante quinze dias eu fui abençoada com mais uma hora, uma hora, uma hora junto das outras que também me pareceram ganhas. o tempo ganha-se, aprendo. no meio do Atlântico os banhos parecem mais demorados e quentes, os vales mais verdes de um verde como aquele verde onde os animais andam à solta e são felizes, o passo é mais lento e as palavras, preguiçosas, as flores mais coloridas, a generosidade está à vista, completamente arrebatadora. nessas horas, nesse tempo todo em que só ganhei, ganhei até ficar cansada do tempo como nas férias de verão de 3 meses quando andava na escola, a mudança, a mudança foi tão óbvia, tão urgente.  mas tudo isso pode esperar. o tempo esperou por mim e deixou que nessa hora ganha, nessa só hora, me esquecesse de que ele não espera por nada nem por ninguém.


o (meu) nariz
era hora de voltar. hoje e ontem não consegui dormir. levantei-me e fui ao frigorífico, bebi um leite com chocolate daqueles que se sorvem pela palhinha e nos deixam a boca fresca e voltei a deitar-me. de um lado e depois do outro e depois virada de barriga para cima e não conseguia dormir. sempre que fechava os olhos, carregava-vos, sabem, fazia força mas estava a enganar-me a mim mesma, eu sabia que não estava a dormir. e continuava a apertá-los, como se de um momento para o outro o escuro me fosse entorpecer os sentidos e me levasse para a terra dos sonhos. é preciso sonhar. mas também é preciso tirar os sonhos dos escuro e dar-lhes alguma luz, mesmo que sejam horas de dormir.


as (minhas) mãos
estava a fazer o jantar quando ouvi blá blá blá. vinha de televisão, aquela caixa que entretém e tantas vezes nos rouba tempo. blá blá blá, e não parava, estava distrair-me sem saber porquê, não entendia aquele blá blá blá disconexo, deixei queimar os espargos porque ele dizia blá blá blá e eu pensava que não conseguia bem entender o que blá blá blá queria dizer, ou melhor, que se fosse aquilo que eu pensava que era, como seria, como poderia eu continuar a cozinhar como se nada fosse. a viver como se nada fosse, a cozinhar o jantar. as palavras não se percebiam, blá blá blá e continuava, com uma firmeza ilegítima. estamos todos mortos, pensei, mas o blá blá blá continuava eu estava a enlouquecer porque não entendia nada. desliguei a televisão, as pessoas chegaram, abrimos a garrafa de vinho, fresco, geladinho, e as palavras apareceram, ai que alívio, ai que bom que elas não foram embora, aquelas, aquelas que valem tudo. mas os espargos do jantar foram parar ao caixote do lixo.


(a minha intuição)
quando uma criança se ri de mim, fico desarmada. aconchego-me nesses sorrisinhos estridentes e gritantes e estou absolutamente convencida de que nada me pode afectar. quando eu era criança gostava que me dissessem a verdade, mesmo que fosse a minha verdade, era o que bastava para partir para a próxima brincadeira, a próxima aventura. quando era criança não sabia que essa verdade era a única verdade que vai sempre existir, aquela que trazemos intocável, incorruptível dentro de nós, aquela que não nos faz duvidar. quando eu era criança nada poderia arrancar de mim essas verdades de todos os dias e pelas quais não precisava debater-me. hoje a verdade está sempre a lutar como se tivesse sempre um peso forte, como um braço musculado, a empurrá-la para baixo.