Monday, July 30, 2012

por Ana Rebelo

eu choro se quiser



eyeliner
no ano em que fui viver para Hong Kong assisti a seis casamentos em continentes e países e cidades diferentes. foi uma enorme lição de multiculturalidade. mais uma, porque viver num país que não é o nosso é já por si carregado de emoções cujo único ponto comum é a diversidade. a cerimónia chinesa, por exemplo, exige à noiva três vestidos diferentes, como as apresentadoras dos Globos de Ouro mas sem direito a passagem de modelo. em anos seguintes fui a mais alguns, todos bonitos e românticos, uns mais outros menos. mas em todas as culturas o casamento é sobretudo uma tradição. de amor. (ou do-que-quer-que-seja-que-leva-as-pessoas-a-casar). para mim a sensação é sempre a mesma, a de que estou a viver um momento único. o deles e o meu. porque enquanto tudo acontece há uma parte de mim que está a viajar através dos olhos deles à procura do brilho reflectido nos meus. e sem borrar o sonho.


piercings nas orelhas
depois há as fotografias. também na China os noivos vão três meses antes para um lugar exótico fazer o seu álbum cheio de fotografias que mostram a alegria do casamento em antecipação e com um guarda-roupa que não será o mesmo que vão usar na cerimónia. imortaliza-se um-dos-dias-mais-importantes-da-nossa-vida ainda antes de o ser. e o amor, também se imortalizará nos anos que passarão às fotografias, quando as estiverem a mostrar no computador aos colegas do trabalho, suspirando como-eu-fui-tão-feliz-num-dos-dias-mais-feliz-da-minha-vida? durante a minha viagem o flash não pede autorização para disparar tornando tudo tão mais autêntico, os lábios que se esfregam suavemente para renovar a intensidade do gloss, os cabelos que se compõem quando o vento nos tenta despentear, alisa-se o vestido e esboçam-se os melhores sorrisos. e eles, eles por quem lá fomos e por quem desejamos tudo, ao fundo consigo ouvir os seus corações num silêncio que celebra aquilo que ainda, após horas e horas de tanta partilha, só vão finalmente conseguir dizer quando tudo terminar e estiverem sós. 'eu quero ser livre'. 



lábios cor de rebuçado
estava a reparar em ti e nos teus cabelos brancos. tens tantos, tantos. foi assim de repente, de repente eles apareceram, mesmo em cima, grossos como os fios do esfregão-palha-de-aço. apareceram rapidamente como a espuma de uma onda quando rebenta e não avisa e leva tudo atrás, assim, tantos e que se vêem também nas fotografias. esses, já não podes evitá-los. vão aparecer mais e qualquer dia tens de disfarçá-los 'ah, são sexy, os cabelos brancos', não são nada. ganhaste tanto mais do que isso, lembras-te quando tinhas vinte anos e sonhavas com coisas que agora não têm importância nenhuma tinhas medos que agora seriam apenas piadas de mau-gosto mas eram os teus medos. mas mais impressionante, é impressionante, sabias?, querias ser alguém extraordinário e não sabias que já eras.  sexy é a tua generosidade. 'queres ser livre para quê?'


flor-de-cheiro
bem-me-quer. mal-me-quer e se assim é, não quero nada. e arranco uma pétala atrás da outra, arranco-as todas se for preciso, mas se é assim não quero nada. ela larga-lhe a mão, larga o bouquet e tropeça no véu em direcção àquelas portas pesadas, aquelas por onde, minutos antes, havia entrado, minutos antes havia começado um-dos-dias-mais-felizes-da-sua-vida, tam-tam-taram, tam-tam-taram. e ela corre, corre e vê a luz lá fora e vê as pessoas que se espantam e gritam e choram e ela corre, continua a correr com um sorriso escondido na cara que ainda não sabe explicar, que ainda não pode explicar. antes de desaparecer olha uma última vez para ele, ali diante da nave da igreja, diante de todos os que gritam e choram, diante dela, ele ali diante dela e já sem ser ele, já sem saber quem é ou se alguma vez foi e pensa. 'se amamos e fugimos para ser livres, nunca o seremos porque já estamos presos em nós'.


anéis que são dedos
estava convencida de que tinha copos de champagne. mas confundi tudo com a minha vida anterior, aquela onde já havia copos de champagne que foram também comprados para uma celebração de emergência. o champagne era bom mas este, embora sem copos próprios para beber champagne, era ainda melhor, era doce e fui eu mesma comprá-lo ao supermercado. mas não me lembrei dos copos, ou melhor, lembrei-me mas afinal não foi nesta vida. esta é aquela vida em que a densidade da minha pele já não é a mesma e há zonas localizadas onde pode descair precocemente. mas isso também iria acontecer na vida anterior e fosse qual fosse o champagne. bebêmo-lo em copos nada apropriados mas com uma alegria que não me lembro e sentir antes. acho até mesmo que não me lembro de mais nada depois disso que não desta vida que é agora e como a sinto tão minha. sempre num-dos-dias-mais-importantes-da-minha-vida.


(sempre)
- achas que eu sou feia?
- não és, não senhor.
- então... eu sou linda?...
- tu... és um amor.
- responde-me então porque razão eu vivo só sem ter alguém...
- tu tens o destino da lua, a todos encanta, não é de ninguém.
(2006)







Friday, July 27, 2012

por Ana Rebelo

começar de novo outra vez


olhar
quando era miúda, aí uns seis ou sete anos, a primeira coisa que quis ser foi bombeira. queria salvar vidas, dizia, cheia de um altruísmo que ainda nem sabia que o era nem o que significava, totalmente distraída pelos carros vermelhos e sem a mínima percepção de perigo. adorava carros, sempre fui muito maria-rapaz. depois, ainda no mesmo alinhamento mas já mais menina-que-gosta-de-ir-aos-Porfírios, quis ser juíza. acreditava na justiça, ou pelo menos, naquilo que entendia ser isso e que ainda hoje não sei se entendo bem. sempre as pessoas, sempre as pessoas. quando percebi que para chegar a juíza o caminho era demasiado longo e teórico e eu achava que não ia ter tempo, já achava que não ia ter tempo, finalmente decidi ser comunicadora. gostava de pessoas, sempre as pessoas. gostava de falar com pessoas. na altura, sabia falar mais que escutar e só mais tarde venho aprendendo o poder da comunicação quando se centra mais na escuta activa que nas palavras que tão ansiosamente queremos dizer ao outro. achava que seria uma boa aposta, e convencida de que era isso mesmo, assim me lancei na vida académica, (in)segura de um caminho que não fazia a mais pequena ideia, ainda estava só a começar.



ouvir
a vida é demasiado contemporânea. ouvi esta frase no filme Cosmopolis, que vi esta semana numa das minhas salas de cinema preferidas. guardei-a porque achei que não me tinha dito ainda tudo o que tinha para me dizer. não sei se algum dia conseguirei ver o fim a esta frase e ainda bem. e vim para casa inquieta, os meus olhos brilhavam e eu falava depressa como se estivesse sob o efeito de um psicotrópico qualquer, mas não, era apenas a adrenalina que já conheço tão bem, a dos pensamentos. pensar também é um vício. cheguei cheia de ideias e tinha de pensar em todas elas. sempre fui muito pensadora. começou por ser inconsciente e pueril, achava que todas as coisas que aconteciam mereciam mais de mim. percebi rapidamente que isso era incomportável, como a paixão eterna. agora sei o que todos os pensamentos fazem à nossa cabeça e percebo que nem tudo merece o meu tempo da mesma forma. e a vida tornou-se cada vez mais deste tempo, do tempo que corre deixando para trás tudo e todos. como se as recordações fossem apenas símbolos, evidências de um existencialismo lírico. ontem não conta mais hoje, somos fast-food. temem-se os compromissos com a vida para chegar à conclusão que nunca foi de outra forma. e quando não existe mais forma nenhuma de vivê-la.



falar
aprendi a contar estórias. sem atenção à cronologia e com 'e'. muitos acham que é moda de escrevinhador dos tempos modernos ou quem sabe, uma tentativa de aproximação a um desses escritores mais contemporâneos. mas quem me conhece sabe que sempre foi assim que conheci esta palavra. sempre foi muito clara para mim a diferença entre o que é factual e o que é descrito nas páginas da nossa imaginação. essa clareza rebentava comigo. escrevia coisas do fundo do poço que era a minha alma. escrevia na densidade de quem ainda se descobre e sente tudo, como se a sensibilidade fosse uma alergia de pele, uma reacção inevitável daquilo que não sabia gerir de outra forma. mas descobri que não tem de ser e continuo a ser um paradoxo. até acho que não sou muito boa a contar estórias, perco-me, faço muitos intervalos publicitários e por vezes o espectador muda de canal. e como não gosto de falar para o boneco, é talvez por isso que também escrevo, deixando ao critério de quem lê, o que quer ler e até quando quer ler e de que forma quer ler as minhas estórias com 'e'. se é o caminho que importa, como podemos ser assim tão contemporâneos?




cheirar
fui sempre uma boa aluna. daquelas que estudavam muito e faziam apontamentos que os outros fotocopiavam e liam às portas do anfiteatro antes de entrar para as frequências, e não ficava nada chateada com isso. as pessoas, sempre. o meu sorriso vulnerabilizava-me mas não sabia como dosear essa simpatia que sempre irrita tanta gente e que me saía pelos dentes já tortos mais impecavelmente tratados. tinha assumido o meu primeiro grande compromisso, o de ser-alguém-na-vida. não imaginava o quão definitivo seria este passo, tanto quanto todos os passos que se podem dar na vida - definitivos até um dia. definitivos até à finitude que a própria vida tem. também somos aquilo que fazemos e hoje sei que não quero continuar a fazer o mesmo. porque não sou a mesma pessoa e isso não implica que tudo o que tenha feito não tenha sido fruto de uma tremenda dedicação e empenho. mas não há ambições eternamente imutáveis, profissionais ou pessoais. o que há agora é alguém que se fez pessoa. uma pessoa a querer ser feliz inteira. continuo a ser naturalmente simpática, tenho o mesmo sorriso e cultivo-o. já não o sinto como uma ameaça às portas sociais, simplesmente porque é a minha identidade, o meu património.


tocar
a pele morena e o sorriso aberto induziram em erro. pensei que o aperto de mão firme tinha reforçado a formalidade da ocasião, mas às vezes as pessoas não sabem delimitar espaços quando comunicam. não falo em zona de conforto, essa deve ser usurpada tanto quanto possível e já sabemos que é só assim que vamos lá até onde nunca ninguém imaginou chegar. foi mais pela invasão de uma área protegida, um lugar para onde só convido quem quero. 'como-me-deu-espaço-para-isso'. dei? o meu sorriso não é uma porta sem fechadura. e sem contextualização aparente, desconcertando-me, insistiu em desfazer papeis que existem, distintos. sorri uma vez mais para responder que não entendia onde queria chegar. utilizando subterfúgios e alegações de modernidade, justificou-se. longamente, demasiado. e eu acabei por não responder à pergunta.  não sei se deu conta, mas não respondi porque não-dei-espaço-para-isso. quem desmontou quem, o invasor ou o invadido? cruzei as pernas e reposicionei-me. mas não vim contente. ouvi-me a pensar pela boca de um estranho e retraí-me. normal. mas nunca se sabe o que se esconde por detrás de um sorriso. 


(sentir)
amanhã ganho mais um ano de vida. se quisesse fazer um balanço, porque será que sentimos a necessidade de estar sempre a fazer balanços à medida que a vida passa, e não apenas a vivê-la?, poderia dizer que estou de papo-cheio. nunca me faltou nada na vida, pelo menos, nada do que é importante. nunca me faltaram ideias, nunca me faltou perspectiva. nunca me faltou paixão. também nunca me faltou vontade. aquilo que falta será sempre diferente ao longo do caminho que só ainda poderei tentar adivinhar. e num momento, vou querer coisas diferentes, pessoas diferentes que caminhem ao meu lado, mas não é porque as outras já não importam, não é nada disso. não é mesmo nada disso. há uma verdade imutável nesse percurso que se desenha a lápis de carvão: a de que nos vamos encontrar todos sempre, sempre. mais tarde ou mais cedo.











Friday, July 20, 2012

por Ana Rebelo

a menina dança, sempre




pelos olhos, cegos
encontraram o passarinho ao pé da roda de um carro. estava débil e trouxeram-no para dentro, cuidaram de arranjar uma caixa de cartão onde deixá-lo confortável sobre as folhas de papel higiénico, macias e aquecidas pelo sol que entrava pela janela. no fundo, já todos sabíamos que não íamos poder fazer muito pela vida daquele ser tão pequeno e frágil e já com uma estória tão complicada. sabíamos mas tentámos, tentámos até ao fim e com toda a convicção que o conseguiríamos salvar. cada um com a sua ilusão. o passarinho arfava, eu conseguia ver o coração dele acelerado, mas não era de felicidade, estava a sofrer. um coração bate sempre da mesma maneira, seja por dor ou por prazer as batidas são iguais na força, na cadência, na profundidade. quão enganador e ao mesmo tempo, se o escutarmos bem, ele bate certo. nem sempre quer saber, iludindo-se entre estas duas emoções extremas e tão intensas. mas ele bate certo. 


pelos ouvidos, emprenha-se
a janela estava aberta para o sol que vinha de baixo da rua brilhando nas linhas do eléctrico nº28 que passava em direcção ao Largo do Camões. a janela estava aberta, toda escancarada, mas eu não conseguia ver nada lá para dentro porque estava alta, só uns cortinados que ondulavam com o vento quente e a parede branca. a janela estava aberta e dela saíam sons, vozes graves que em uníssono cantavam. era ópera. eu ouvia muita ópera, eu quando era tu ainda ouvia muita ópera. ai como eu gosto de ópera, tão dramática, tão intensa, a banda sonora perfeita do nosso tu e eu. a música invadiu mais do que a rua, entrou por mim adentro, adentro como um sopro gelado, tão frio que congelou o sangue das minhas veias. paralisei. encostei-me ao muro todo grafitado e deixei-me ali, de olhos fechados com o sol a incidir agora no meu rosto, a queimar-me as bochechas de cor-de-rosa. e escutei, escutei tão bem. desta vez escutei muito bem, as vozes pareciam estar mesmo ali do meu lado, graves mas tão impenetráveis, tão seguras de si. a paz voltou. voltei a ser livre. como um passarinho. 


pela boca, morre-se
perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. depois do desejo, aquele desejo que nos adormece a razão, lentamente. aquele desejo que vem e sabemos ir depressa mas temos de o viver e vive-se o desejo, corremos para o outro lado onde não há oceano, corremos para a porta de desembarque e esperamos, ora sentados ora em pé, olhando quem passa, quem também espera, esperando encontrar tudo isso, sim, tudo isso que desejamos. o sorriso abre-se e deixa transparecer a fragilidade, sim, estou aqui e desejo-te. consomem-se os corpos, consomem-se numa paixão rendida, absoluta, numa paixão vermelha, transpiram os corpos e caem cansados de prazer, ao lado um do outro, ficam deitados a rir para o tecto branco do quarto branco. agarram-se para dormir como se nunca mais se pudessem largar, nunca mais mesmo. e antes de adormecer, antes de adormecer o bafo quente das palavras ouve-se, encostado no pescoço, dizem-se todas as palavras, todas as palavras proibidas são plenas, cheia de significado transformador, determinado. tudo aconteceu quando eu era feliz. 




pelo nariz, sai o ranho
chama-se sinusite. esta coisa de ter ranho na cara toda. e só quem tem poderá entender para além da expressão tão crua e sem beleza nenhuma. quando há dois lados, são mesmo dois lados e não o que mais nos convém. devem cingir-se as posições extremas quando os temas são extremos e não por causa de dúvidas existenciais sobre que camisa vou vestir de manhã para o trabalho ou se vou passar a comer sopa às refeições. há coisas que nunca poderemos entender a menos que as vivamos. não é segredo que isto me faz sofrer. os meus pensamentos ficam duros e eu não quero endurecer. eu sou meiga e doce. eu danço todas as manhãs, eu sorrio todos os dias, eu converso, eu observo. eu tenho coisas para dizer. eu não peço a ninguém que sofra por mim mas reservo-me ao direito de esperar que sim, que alguém algures me ame tanto que sofra por mim. e o sofrimento, quando é um sentimento que não está relacionado com ter o que se quer, é um sentimento muito bonito. é em sofrimento que vamos lá mesmo ao fundo para nos (re)conhecermos. vamos na esperança de encontrar algo bom e que não tenha de ser legitimado pelos outros para sabermos que é bom. geralmente, encontramos. e aprendemos que mesmo não tendo outro remédio que não sofrer já, amanhã saberemos o que fazer para não sofrer da mesma maneira. 


pelas mãos, os dedos
depois tomam-se decisões, tem de ser, tomar decisões faz parte de ser crescido. muitas vezes essas decisões são incompreensíveis para aqueles a quem as consequências são caras. outras vezes, confundem-se egoísmo com o-meu-direito-é-igual-ao-teu. mas tomam-se decisões porque já não há mais o que perdoar. já não há mais o que compreender que não os sinais. um sinal é como o alarme de incêndio: obriga-nos a parar dentro do fumo que não nos deixa enxergar, na tentativa de impedir que as chamas nos consumam. isto não é um ensaio. o passarinho não se mexia, não se mexia. fiz-lhe festas na cabeça, ao de leve, nas asinhas, ao de leve. mas ele continuava ofegante naquela luta final que se confunde com serenidade. demorei a largar, a entender no âmago do seu mais profundo significado, que a busca pela felicidade só pode ser real quando estamos dispostos a deixar ir, a deixar de lado maus hábitos e por vezes, pessoas que foram tudo para nós. e isso tem o seu tempo, claro. não é fácil, mas é necessário. porque o desfecho é inevitável. o passarinho morreu. tudo morre se não existe a coragem de aceitar aquilo que sabemos não ter outro final possível.   


(Tu és Eu)
um mais um é igual a dois. dois que são um, feitos como cada qual, de matérias diferentes. e como um que somos, temos ideias, convicções, formas de olhar as coisas que nem sempre vão coincidir. quando aceitámos que os nossos um seriam dois, aceitámo-nos. com as qualidades e principalmente, com os defeitos. aceitámos ser dois que se respeitam, dois que se amam, dois que crescem um com o outro. para que continuemos a ser dois teremos de ser sempre verdadeiros um com um, ainda que, certamente, haverá alturas em que isso vai ser difícil porque queremos impressionar o outro um com receio de deixarmos de ser dois. e quando isso acontece, a vida desarma-nos e faz com que cheguemos a uma encruzilhada. agora um mais um têm de saber se querem continuar a ser dois. se forem um mais um igual a dois, nem um nem um vão suportar destruir o sonho do outro.


Tuesday, July 10, 2012

por Ana Rebelo

fechada para balanço


perdi um soutien e umas cuecas
as semanas acabam e começam, nunca nenhum dia é igual ao outro. não sei porquê, mas isto hoje soa-me muito bem, hoje como quem diz 'nos dias que correm'. eu pensava que era realmente uma nova oportunidade, sabem, aquelas coisas que nunca acontecem e que se acontecem é porque how-stupidly-lucky-we-are-so-lets-not-fuck-this-up-again. mas isso não tem de significar que vá ser realmente desta-vez-é-mesmo. até pode não ser isso e na verdade, quase nunca é, na verdade tudo não passa de whishful thinking e que mal há nisso, todos sonhamos que um dia vamos ser algo que ainda não somos. mas os sonhos plantam-se e regam-se e aninham-se em nós até poderem co-existir com a nossa realidade. enquanto me despia ele olhava para o meu corpo através do seu, querendo consumir-se nele, querendo-me. e eu pensava na fragilidade disto tudo. às vezes estas oportunidades que parecem novas são mesmo velhas no seu significado mais primário. o amor nem sempre é tudo, nem acredito que estou a dizer isto mas é verdade que hoje, nos dias que correm, é preciso mais do que o amor sentido pelo outro. é preciso o amor dentro de nós.


o espelho que caiu e não se partiu
agora-é-tudo-ou-nada. às vezes a vida quer-se com esta practicabilidade, é fundamental que assim seja. se não tivermos a coragem de assumir os nossos medos e mesmo assim, enfrentá-los, só nos estaremos a afastar mais de quem somos. quando começamos a racionalizar tudo é porque já estamos perdidos, totalmente submersos pelo lodo que só nos empurra ainda mais para baixo. não me lembro de ter tomado qualquer decisão importante na minha vida que não tivesse sido instigada pelo medo. sempre vivi assim, aliás, desconheço outra forma de vida terrena. está na hora, vai. vai lá encontrar o teu lugar seguro que não seja em mim, vai ao seu encontro como eu fui ao encontro do meu, sem resistência. eu não posso ajudar, eu não posso desamar e voltar a amar e depois sentir que não entendes que me dás mais um corte no coração quando me rejeitas rejeitando os frutos do nosso amor mais altruísta. não entendes. é que eu já tinha juntado os cacos e agora eles são um espelho de talha dourada que está pendurado na parede, para o qual olho todos os dias e todos os dias me faz lembrar que está na hora de te deixar partir. 


fiquei doente, de cama
com uma bela febre-dos-fenos. com direito a uma pedrada de anti-histamínicos e nasomed e ar para respirar saído de um aerosol. é horrível precisar de ir buscar ar a um tubinho quando o ar em volta é rarefeito. o meu corpo ressentiu-se, primeiro ficou dormente e branco, não interessa se tinha estado a tomar sol e a minha pele estava sensível. o meu corpo estava a ressacar do bliss dos últimos dias. assim de repente tudo tinha passado, todas as palavras e gestos e intenções e mudanças - passaram. foi como se nada tivesse acontecido, mas aconteceu porque o meu corpo acusou e faliu. não havia nada a fazer e depois de um bom banho quente caí na cama num delírio purgatório, os suores eram fortes e a minha testa estava quente e os meus olhos, húmidos. não, não foi de chorar. não chorei. não chorei porque não fazia sentido. era como se eu fosse um barco que estivesse a navegar em águas calmas e de repente a tempestade atingia-me e eu tinha de recorrer à bússula e cartas marítimas e içar as velas para sobrevivê-la. e assim fiz, tão rapidamente quanto a previsibilidade do que me assolou.


tudo às claras
e fé em Deus. ou nas energias eólicas. ou nos beijos debaixo do azevinho à meia-noite. ou nas escadas e nos gatos pretos. ou nas figas. ou nas pragas rogadas aos céus em dias de trovoada. ou no álcool e na droga ilegal. ou no sexo. ou nos anti-depressivos. estou-me absolutamente nas tintas para o quê, desde que sim. diz uns belos de uns palavrões, dá uma boas gargalhadas, goza com as roupas das pessoas no metro, retribui o sorriso ao rapaz dos olhos-verdes que estava hoje no café. faças o que fizeres, o que quer que seja, agora a esperança é o asset mais importante do teu portfólio de carácter. se não tens, arranja, se não sabes como, aprende. porque vais ter de continuar a levantar-te todos os dias e ninguém vai ser brando contigo, os carros vão continuar a poluir a camada de ozono, a estupidez vai continuar a dominar o povo e tu firme, aí, firme como uma barra de ferro. porque não há nada mais irritante do que deixarmos que o zumbido de uma mosca, uma só, nos impeça de dormir uma boa noite de sono. ou então uma alergia ao sol que nos impeça de aproveitar o verão. melhor ainda: orgulharmo-nos das palmas surdas que ecoam na nossa cabeça ante este belo espectáculo que são os nossos dias.


cliente por dente
gosto de honestidade. e gosto mais ainda de honestidade feita com assertividade. às vezes sou dura a dizer as coisas, dizem que sim, mas é a minha expressão determinada apenas a transmitir que é a sério, há coisas que devem ser levadas muito a sério, como o compromisso. pode ser chegar a horas, ser pontual. ou então pagar à empregada no fim do mês. e tanto mais havia para dizer mas só tenho tempo para relembrar que um compromisso dá-se quando as duas partes assumem no empreendimento de qualquer coisa, num dado momento que é também comum. ninguém está a fazer um favor a ninguém. o desafio é mútuo. os ganhos e as perdas, também. o que é que há de tão difícil de entender nisto? pode-se quebrar um compromisso, pode, é claro. mas assumindo todas as consequências, de cabeça erguida. de convicção içada, como as bandeiras. quem não sabe honrar um compromisso não se pode dar ao respeito. e mesmo assim, cá continuamos a levar com isto porque ninguém parece ter tomates para prender essas pessoas por fazerem da vida dos outros um espectáculo de marionetas de baixo orçamento.


(hérnia do hiato)
conheço um mundo de gente insatisfeita com as suas vidas, actualmente. na verdade, o panorama não é muito favorável ao optimismo, mas não devem ser os factores externos a condicionar a nossa forma de digerir as coisas. há muitas pessoas desempregadas mas há outras que estando empregadas, não têm grandes perspectivas. umas dizem às outras (ou a si próprias) que só porque têm trabalho têm de contentar-se e dar-se por felizes 'tendo em conta que'. entendo o princípio básico de sobrevivência mas teremos de ser todos mediocres e calar a vontade de lutar por mais? não será esta a verdadeira crise, aquela que é abafada em nós? é como a auto-motivação, esse conceito bonito que inventaram já no final do século XX que tão somente quer dizer desresponsabilização por quem de dever. está tudo trocado e depois o corpo é que paga, já dizia quem pagou pelo não-conformismo, e pagou bem. 

Monday, July 2, 2012

por Ana Rebelo

mais uma volta no carrossel




olho espreitador
o mundo é redondo. foi o que me disse a minha amiga chinesa na despedida, obrigadas a separarmo-nos logo ali, junto à entrada para controle de passaportes. deixávamo-nos cheias de lembranças que ainda não o eram, sabíamos que provavelmente não voltaríamos a ver-nos e que nem sempre isso quer dizer menos que uma amizade intensa a combinar com o que foi um dos períodos mais marcantes da minha vida. senti no abraço dela a força daquelas palavras, mas julgo só agora começar a entender a abrangência do seu significado. de Hong Kong a Lisboa são tantos quilómetros e água e diferenças horárias que marcam toda uma lonjura imutável, uma distância entre o presente e um futuro sem a tentação de parar no meio. mas existem sempre estes recantos onde nos encontramos e encontramos pessoas que nos acompanham pelo tempo necessário - necessário, nem sempre o tempo que tantas vezes gostaríamos. e tal como as pessoas, cada take da nossa vida se vai alinhando e reinventando para dar lugar a outras cruzadas, sem que tenhamos a noção de que o mundo nunca poderia parar para sairmos ou congelar numa fracção de tempo.



ouvido altifalante
nos aeroportos há vozes que vêm do céu. são vozes que nos alertam para qualquer coisa importante, sobretudo quando andamos distraídos. vozes que nos indicam onde é o próximo embarque e que sejamos pacientes e esperemos pela nossa vez. vozes que nos fazem saltar o coração porque anunciam uma chegada há muito desejada, mesmo se a sensação é a de estar em casa em quem chega. gosto muito de partidas e de regressos porque é entre estes dois extremos que reside o melhor de tudo e aquilo que têm em comum: o sorriso aberto sem sabor a distância ou ausência, sem espaço nem lugar, sem mágoa ou desilusão, apenas os abraços apertados que sucedem ao encontro dos olhares, do momento, daquele momento único e intransmissível. é aí que está a felicidade, é sempre aí que ela se renova, como se todas as coisas importantes da vida só pudessem começar assim.


boca(dillo)
pudera eu gritar todos os pensamentos que se cruzam na minha cabeça, que me confundem e por segundos me fazem esquecer de quem sou, em quem me tornei. sou a mesma, sou sempre a mesma mas com mais traços desenhados, mais definições, apenas outras dúvidas e sobretudo, outra forma de lidar com elas. sou a mesma na origem mas que se transforma pelo presente, pela maneira de estar, de pensar e de agir. não há mais completa sensação de bem-estar do que viver esse crescimento, mesmo que por vezes na revelia de estarmos bem connosco quando mais ninguém está. e isso não quer dizer que éramos pior do que somos, fico tão triste quando alguém diz isso, como se fosse possível aqui ter chegado sem ser pelo meu próprio pé.


nariz sisudo
eu sei que há males que vêm por bem e que nada acontece por acaso e essas coisas todas. eu sei, até porque tenho tanto de bem que veio desses males que todos os dias me fazem lembrar que nada, nunca ou quase nunca, é à primeira. e eu vivo isso todos os dias, grata. mas também há outros em que não posso deixar passar tudo assim, como se não importasse nada, como se não tivesse acontecido nada. a princípio talvez sim, todos somos obrigados a aprender como controlar emoções, a ser politicamente correctos, a calar a angústia e a frustração para que nos virem as costas. no entanto, mesmo convencidos de que somos imunes a tudo nem sempre conseguimos controlar o touro que corre desenfreado em direcção a nós, sedento por sangue. 



mãos suaves
sorte ou azar. samba ou fado. tudo é paradoxal e apenas sustentável por sê-lo. no entanto, há quem diga que estamos condenados a ficar sempre na tentativa em vez de liderarmos. sim, também falo de futebol mas é muito mais do que isso. falo de nunca nos darmos uma oportunidade para viver o melhor dos dois mundos, para confiar mesmo se não entendemos o porquê naquele momento imediato. sim, às vezes é mesmo uma questão de sorte ou azar, de ganhar ou perder. mas questionar a vontade, a coragem, o empenho e a infindável crença na capacidade de sonhar que se conseguiu entre uma hipótese e outra, isso é que não.


(sinal de alarme)
preciso de um café com gelo e limão. tenho a cabeça a estalar e como sempre, evito os comprimidos, talvez com receio de ficar sem cabeça, ainda mais do que quando a dor me ataca também as ideias. e lá vem a maldita da insegurança, que o café faça parar a minha cabeça e me devolva a tranquilidade do que o coração sente. não há nada que temer quando o coração quer, pois não?