Tuesday, September 11, 2012

por Ana Rebelo

rentrée


os (meus) olhos
regressava de Cascais pela Marginal. ao olhar o grande Atlântico com reflexos prateados vindos do sol incandescente, tão grande, tão bonito, pensava porque é que a nossa Marginal é tão diferente do calçadão do Rio de Janeiro, com aquela pedra branca e cinzenta herdada de Portugal, de Portugal, aquele país que tem uma calçada tão bonita em pedra branca e cinzenta de que todos falam no Rio de Janeiro. aquele canto da Europa tão especial, de língua bonita, é assim que eles dizem. os passos na Marginal não são feitos de pedras brancas e cinzentas e o passeio por vezes à estreito e é uma via um pouco mais tranquila que a Vieira Souto e tem vivendas e prédios bonitos como os do Leblon ao Arpoador. é verdade que poucas capitais se igualam em esplendor à paisagem luxuriante do Rio. mesmo sendo as praias do calçadão do Rio de Janeiro bastante comuns, mesmo sendo uma cidade tão movimentada, mesmo sendo tão poluída, mesmo sendo criminosa. a nossa Marginal nunca foi tão amada assim.


os (meus) ouvidos

não me doeu nada. apenas o orgulho e essas são as feridas que melhor se curam. arranquei o coração e fui implacável, de uma forma que me fez sentir que o destino sou eu quem o traço, com riscos de giz no chão, é certo, mas um a um sou eu quem os desenha. riscos que podem - e eu sei que vão, sempre - deslizar numa plataforma escorregadia de tempos que não controlo, de ideais que não partilho, de gente que me atropela. mas a minha mente, quem eu sou, no que penso, eu controlo. é a única coisa que posso controlar. a nossa Marginal não é celebrada pela música quente que faz arder o coração. mas eu vinha assim, fixada neste um pensamento que não sei bem porque insistia. talvez porque só quando me transporto para outro lugar é que sei que estou em casa. e não há nada que mais ame do que a minha casa, mesmo quando tem rachas nas paredes e pode cair a qualquer momento.


a (minha) boca
quem disse que o tempo foge, que o tempo não chega, que não conseguimos ganhar-lhe? eu ganhei, eu deixei-me levar por ele, cega e agarrei-o e ganhei mais uma hora por dia durante quinze dias. durante quinze dias eu fui abençoada com mais uma hora, uma hora, uma hora junto das outras que também me pareceram ganhas. o tempo ganha-se, aprendo. no meio do Atlântico os banhos parecem mais demorados e quentes, os vales mais verdes de um verde como aquele verde onde os animais andam à solta e são felizes, o passo é mais lento e as palavras, preguiçosas, as flores mais coloridas, a generosidade está à vista, completamente arrebatadora. nessas horas, nesse tempo todo em que só ganhei, ganhei até ficar cansada do tempo como nas férias de verão de 3 meses quando andava na escola, a mudança, a mudança foi tão óbvia, tão urgente.  mas tudo isso pode esperar. o tempo esperou por mim e deixou que nessa hora ganha, nessa só hora, me esquecesse de que ele não espera por nada nem por ninguém.


o (meu) nariz
era hora de voltar. hoje e ontem não consegui dormir. levantei-me e fui ao frigorífico, bebi um leite com chocolate daqueles que se sorvem pela palhinha e nos deixam a boca fresca e voltei a deitar-me. de um lado e depois do outro e depois virada de barriga para cima e não conseguia dormir. sempre que fechava os olhos, carregava-vos, sabem, fazia força mas estava a enganar-me a mim mesma, eu sabia que não estava a dormir. e continuava a apertá-los, como se de um momento para o outro o escuro me fosse entorpecer os sentidos e me levasse para a terra dos sonhos. é preciso sonhar. mas também é preciso tirar os sonhos dos escuro e dar-lhes alguma luz, mesmo que sejam horas de dormir.


as (minhas) mãos
estava a fazer o jantar quando ouvi blá blá blá. vinha de televisão, aquela caixa que entretém e tantas vezes nos rouba tempo. blá blá blá, e não parava, estava distrair-me sem saber porquê, não entendia aquele blá blá blá disconexo, deixei queimar os espargos porque ele dizia blá blá blá e eu pensava que não conseguia bem entender o que blá blá blá queria dizer, ou melhor, que se fosse aquilo que eu pensava que era, como seria, como poderia eu continuar a cozinhar como se nada fosse. a viver como se nada fosse, a cozinhar o jantar. as palavras não se percebiam, blá blá blá e continuava, com uma firmeza ilegítima. estamos todos mortos, pensei, mas o blá blá blá continuava eu estava a enlouquecer porque não entendia nada. desliguei a televisão, as pessoas chegaram, abrimos a garrafa de vinho, fresco, geladinho, e as palavras apareceram, ai que alívio, ai que bom que elas não foram embora, aquelas, aquelas que valem tudo. mas os espargos do jantar foram parar ao caixote do lixo.


(a minha intuição)
quando uma criança se ri de mim, fico desarmada. aconchego-me nesses sorrisinhos estridentes e gritantes e estou absolutamente convencida de que nada me pode afectar. quando eu era criança gostava que me dissessem a verdade, mesmo que fosse a minha verdade, era o que bastava para partir para a próxima brincadeira, a próxima aventura. quando era criança não sabia que essa verdade era a única verdade que vai sempre existir, aquela que trazemos intocável, incorruptível dentro de nós, aquela que não nos faz duvidar. quando eu era criança nada poderia arrancar de mim essas verdades de todos os dias e pelas quais não precisava debater-me. hoje a verdade está sempre a lutar como se tivesse sempre um peso forte, como um braço musculado, a empurrá-la para baixo.


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