Monday, July 30, 2012

por Ana Rebelo

eu choro se quiser



eyeliner
no ano em que fui viver para Hong Kong assisti a seis casamentos em continentes e países e cidades diferentes. foi uma enorme lição de multiculturalidade. mais uma, porque viver num país que não é o nosso é já por si carregado de emoções cujo único ponto comum é a diversidade. a cerimónia chinesa, por exemplo, exige à noiva três vestidos diferentes, como as apresentadoras dos Globos de Ouro mas sem direito a passagem de modelo. em anos seguintes fui a mais alguns, todos bonitos e românticos, uns mais outros menos. mas em todas as culturas o casamento é sobretudo uma tradição. de amor. (ou do-que-quer-que-seja-que-leva-as-pessoas-a-casar). para mim a sensação é sempre a mesma, a de que estou a viver um momento único. o deles e o meu. porque enquanto tudo acontece há uma parte de mim que está a viajar através dos olhos deles à procura do brilho reflectido nos meus. e sem borrar o sonho.


piercings nas orelhas
depois há as fotografias. também na China os noivos vão três meses antes para um lugar exótico fazer o seu álbum cheio de fotografias que mostram a alegria do casamento em antecipação e com um guarda-roupa que não será o mesmo que vão usar na cerimónia. imortaliza-se um-dos-dias-mais-importantes-da-nossa-vida ainda antes de o ser. e o amor, também se imortalizará nos anos que passarão às fotografias, quando as estiverem a mostrar no computador aos colegas do trabalho, suspirando como-eu-fui-tão-feliz-num-dos-dias-mais-feliz-da-minha-vida? durante a minha viagem o flash não pede autorização para disparar tornando tudo tão mais autêntico, os lábios que se esfregam suavemente para renovar a intensidade do gloss, os cabelos que se compõem quando o vento nos tenta despentear, alisa-se o vestido e esboçam-se os melhores sorrisos. e eles, eles por quem lá fomos e por quem desejamos tudo, ao fundo consigo ouvir os seus corações num silêncio que celebra aquilo que ainda, após horas e horas de tanta partilha, só vão finalmente conseguir dizer quando tudo terminar e estiverem sós. 'eu quero ser livre'. 



lábios cor de rebuçado
estava a reparar em ti e nos teus cabelos brancos. tens tantos, tantos. foi assim de repente, de repente eles apareceram, mesmo em cima, grossos como os fios do esfregão-palha-de-aço. apareceram rapidamente como a espuma de uma onda quando rebenta e não avisa e leva tudo atrás, assim, tantos e que se vêem também nas fotografias. esses, já não podes evitá-los. vão aparecer mais e qualquer dia tens de disfarçá-los 'ah, são sexy, os cabelos brancos', não são nada. ganhaste tanto mais do que isso, lembras-te quando tinhas vinte anos e sonhavas com coisas que agora não têm importância nenhuma tinhas medos que agora seriam apenas piadas de mau-gosto mas eram os teus medos. mas mais impressionante, é impressionante, sabias?, querias ser alguém extraordinário e não sabias que já eras.  sexy é a tua generosidade. 'queres ser livre para quê?'


flor-de-cheiro
bem-me-quer. mal-me-quer e se assim é, não quero nada. e arranco uma pétala atrás da outra, arranco-as todas se for preciso, mas se é assim não quero nada. ela larga-lhe a mão, larga o bouquet e tropeça no véu em direcção àquelas portas pesadas, aquelas por onde, minutos antes, havia entrado, minutos antes havia começado um-dos-dias-mais-felizes-da-sua-vida, tam-tam-taram, tam-tam-taram. e ela corre, corre e vê a luz lá fora e vê as pessoas que se espantam e gritam e choram e ela corre, continua a correr com um sorriso escondido na cara que ainda não sabe explicar, que ainda não pode explicar. antes de desaparecer olha uma última vez para ele, ali diante da nave da igreja, diante de todos os que gritam e choram, diante dela, ele ali diante dela e já sem ser ele, já sem saber quem é ou se alguma vez foi e pensa. 'se amamos e fugimos para ser livres, nunca o seremos porque já estamos presos em nós'.


anéis que são dedos
estava convencida de que tinha copos de champagne. mas confundi tudo com a minha vida anterior, aquela onde já havia copos de champagne que foram também comprados para uma celebração de emergência. o champagne era bom mas este, embora sem copos próprios para beber champagne, era ainda melhor, era doce e fui eu mesma comprá-lo ao supermercado. mas não me lembrei dos copos, ou melhor, lembrei-me mas afinal não foi nesta vida. esta é aquela vida em que a densidade da minha pele já não é a mesma e há zonas localizadas onde pode descair precocemente. mas isso também iria acontecer na vida anterior e fosse qual fosse o champagne. bebêmo-lo em copos nada apropriados mas com uma alegria que não me lembro e sentir antes. acho até mesmo que não me lembro de mais nada depois disso que não desta vida que é agora e como a sinto tão minha. sempre num-dos-dias-mais-importantes-da-minha-vida.


(sempre)
- achas que eu sou feia?
- não és, não senhor.
- então... eu sou linda?...
- tu... és um amor.
- responde-me então porque razão eu vivo só sem ter alguém...
- tu tens o destino da lua, a todos encanta, não é de ninguém.
(2006)







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