"a sua grandeza reside na renúncia;"
a semana termina com uma hora extra. aquela hora que já não nos
permite ter mais ilusões: o verão foi-se. o tempo quente, as brisas nocturnas,
os mergulhos na praia enquanto o sol se põe. o calor das paixões que nunca o
foram mas que o efeito do sol na pele julgou que sim. e as caipiroscas de
maracujá. agora, quanto muito, sumo de tomate bem temperado ou uma chávena de
chá à noite, antes de dormir. está bem, isso também não é mau, nem as mantinhas
quando a chuva bate forte na janela. mas acabou-se a durabilidade. vamos passar
a acordar de noite e a hora que parece termos ganho, esvai-se quando lá fora
sai o ar frio pelas nossas bocas. e depois ainda há o ter de (des)arrumar
novamente o guarda-roupa-só-sei-que-comecei-a-sentir-frio-nos-pés. muito frio,
como se fossem congelar, como quando entramos no mar e deixamos de sentir os
ossos, terei eu deixado de sentir (me)?... e foi tudo tão de repente, e não me
venham dizer que não foi de repente porque eu conheço bem o verão, foi lá que
eu nasci. está aberta a época das mudanças de humor, das lágrimas de crocodilo
e da inevitável sensação pesada do ser.
"(...) a sua dignidade, em
não pactuar com a mentira;"
"para ver, para dar/ para
estar, para ter/ para ir, pra ouvir/ pra sorrir e entrar/ para rir, pra voltar/
a tentar, pra sentir/ e mudar, pra voltar/ a cair, para me levantar
(...)". a sala encheu-se de braços que ondulavam como quando o mar está
bravo e ruge. à frente, o poeta. a voz grave misturada com as luzes, com as
costelas que se viam à distância num corpo seco e maltratado, os poetas padecem
do tanto que dão de si até às entranhas, despindo-se até do seu bem-estar.
foram horas de emoção, de palavras gritadas por esta multidão de braços levantados
e ondulantes. seria amor pela poesia, como eu? quis ouvi-la pela primeira vez
recitada pelo autor. foi outra emoção, aliás, foram muitas outras emoções que
senti naquela sala cheia e que não saberia descrever aqui. no meio de tanta
gente é quando mais nos sentimos sós. houve um momento em que pensei que não ia
ser capaz, em que pensei e-agora?!, em que pensei que todos aqueles braços
ondulantes ondulavam para um mesmo lado, sincronizados como se já estivessem
estado todos ali. e novamente me apaziguei. sem ensaiar. pois é. a vida também
não se ensaia, por mais estúpidos que sejamos ao tentar fazê-lo.
"(...) a sua coragem, em
arrancar máscaras e máscaras."
hoje deixei-me no arrastar da
preguiça (com alguns pesos de consciência). durante a tarde o repouso chega com
a serenidade que a noite não traz no sono, incomodando-me com sucessivos
pensamentos, os assobios do vento, as voltas na cama, apetites nocturnos e
deambulações pela casa. resignada, como se alguém tivesse faltado ao nosso
compromisso, volto para cama e enrosco-me como um caracol que se esconde no
sítio mais seguro que conhece - a sua casca. respiro fundo mas dói-me o tórax.
os dentes pesam na minha boca e daqui a pouco vai ser quase de manhã mas ainda
vai ser de noite por causa da hora que ganhámos. há sempre um senão em tudo.
não sonhei que os dentes me iam cair mas continuam a pesar-me, sonhei antes com
coisas boas mas sem a cara das pessoas e sem saber para quem são boas, mas
imediatamente soube que isso não importava se eram boas. coisas com que também
sonho acordada, às vezes, mas que tento distrair para que um dia possam mesmo
acontecer sem a antecipação que por vezes estraga tudo.
"desamparado até à medula (...)"
ponho a cabeleira platinada. faço poses sexy e repenico os lábios.
sou fatal, destruidora, arraso contigo num minuto e não quero saber. o meu
coração é tão frio quanto a cor do meu cabelo mas sou capaz de te acolher no
calor dos meus braços. fumo cigarros como uma chaminé. por instantes, só por
instantes. não me importa o que pensas de mim. ponho a cabeleira preta e
agarro-te para dançar. transpiro e roço-me em ti, esfregando o meu sexo no teu.
gosto de andar descalça. quero levar-te para casa. quero que dances comigo toda
a vida. ponho a cabeleira cor-de-rosa e os meus olhos ficam subitamente
tristes. bebi muito vinho e sei que estou perdida algures, mas naquele momento,
não me importa disfarçar nada. os meus olhos estão parados no tempo, entre o
que sou e o que tu achas que eu sou. provavelmente vais desejar-me, com lascívia,
ou então vais sentir-te impotente perante mim. se me queres, vais ter-me
realmente, ainda que possas não entender tanta coisa, só e só porque nem eu
mesma entendo. o que eu sei é que podemos ser aquilo que quisermos ser,
especialmente se houver uma peruca a ajudar.
"(...) afogado nas águas difíceis da sua contradição
(...)"
eu podia escrever uma história assim. foi o que pensei, talvez de
forma arrogante, ao ouvir a narração do texto auto-biográfico de Cláudia
Clemente. eu podia pegar na minha história e escrever muitas estórias sobre
ela, a minha história. é fundamental ter-se história para escrever (acho que já
falei nisto algures) mas se não houver experiência, não há nada para contar.
mesmo quando estamos a criar - prefiro esta à palavra 'inventar' - vamos sempre
lá dentro e às vezes bem fundo à procura de um motivo para nos sentarmos a
escrever. é preciso usar todos os sentidos para escrever. até podia não ser
grande coisa, a estória da minha história, mas era real e ser real é o mais
importante. ter alguma coisa para dizer, para contar. para transmitir e como
que alguém se possa identificar. para viajar com quem quiser entrar num dos
meus capítulos. cansam-me as pessoas que estão sempre a dizer que podiam e não
fazem. canso-me.
("(...) morrendo à míngua de autenticidade")
shiuuu... vai começar. pressinto que tudo está apenas no início.
novamente. as luzes voltarão a acender-se e o palco é imenso, nem sei para que
lado me hei-de virar, de frente para uma multidão? fujo? não. dou um passo em
frente, em direcção ao que parece ser uma luz branca e grande num vazio preto,
não reconheço nada nas sombras, a luz ofusca-me. mas continuo, pressinto que
essa luz nunca me vai largar. vai estar sempre lá, mas ainda bem, para que eu
sinta com força o seu impacto, só por causa dela dou mais um passo. e outro e
mais outro. passos vazios que são cheios de caminho.
os aplausos trazem-me sempre de volta.
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