Monday, October 22, 2012

por Ana Rebelo

o último apaga a luz



o feijão azul
"não sei cantar para lá do que o meu coração quer expressar." não sei escrever para lá do que o meu coração quer expressar. é assim que me sento aqui, todas as semanas, a sentir. a recordar. letra a letra, com algumas pausas e momentos desinspirados (o que é que interessa aos outros aquilo que sente o meu coração? toda-a-vida-me-vou-perguntar-o-mesmo), expondo-me, com as fragilidades de qualquer ser-humano mas que todos gostamos de esconder só que escrever não é compatível com isso. criando e imaginando coisas que podem ser a minha estória, a do outro ou a do outro. para se escrever tem de ser ter história, viver história, tem de se ser de todos e de ninguém e mais ainda, de si mesmo. somos ladrões de palavras, apropriadores vis do que ouvimos e sabemos e julgamos saber. somos salteadores, distorcemos, inventamos, eles, nós, estas pessoas, os que escrevemos. somos como as crianças a perguntar 'oh mãe, mas porque é que o feijão da sopa tem de ser castanho?' e a não ficar satisfeitos com uma resposta só. são estas as asas que nos dão e crescem connosco. nada a fazer. se conseguirmos não as cortar, seremos donos do poder da interpretação da realidade. é isso que conta.


a menina que lê a história da terra
imaginei-me lá sentada em cima, sim, lá em cima no meio das nuvens. com tranças longas, uma de cada lado, assim uma espécie de Doroty encantada, com os seus sapatos vermelhos brilhantes e umas mãos delicadas, afinal, segurar o livro da vida não deve ser tarefa simples, tem muitas histórias de todos e explica tudo, até porque é que os feijões da sopa não podem nunca ser azuis. se fosse uma mãe a levar o filho à escola talvez lhe tivesse contado a história da menina da terra assim: um dia ela ficou doente e a terra teve de parar por dez minutos. D-E-Z. cá em baixo as coisas ficaram catastróficas porque ninguém aproveitou para parar para pensar ou para ir fazer qualquer coisa que quisesse muito e nunca tinha feito, não, as pessoas começaram a correr, em pânico, a gritar, a atropelar-se. e tu, querido, o que farias se o tempo parasse dez minutos? porque é que reclamamos algo que na realidade não queremos? (a mãe pensaria) porque é que não deixamos, simplesmente, que nos ofereçam a dádiva da simplicidade, sem desconfiar dela? (a mãe continuava a pensar) porque é que o feijão que tu disseste que não podia ser azul, está agora entalado na minha garganta? (a mãe chora).


o mundo é do tamanho do meu quarto
êxodo: s.m. Saída; emigração em massa de um povo (ou de parte dele); (...). foi o que encontrei no diccionário de português online. queria lá encontrar também as razões deste fenómeno, assim tão bem explicadas, como num diccionário. definições precisas. não existem, seria preciso procurar mais e tantas outras palavras, algumas bem feias. quando emigrei em 2006 lembro-me de ter causado um choque na família e amigos. era tudo muito longe e muito sem sentido 'porque é que te vais meter nisso?'. eu confesso que não sabia muito bem, apenas sabia que tinha de ir. e acho que agora acontece o mesmo mas com uma certeza por vezes angustiante. agora dizem-nos que não há solução. de tanto ouvir, acreditamos mesmo que não há e lá vamos, cheios de projectos, esperançados num futuro melhor. mas não haver solução é tão definitivo quanto a morte, aquela sra de fato preto e foice ao ombro que aparece sem ser anunciada. aos que vão, a coragem de ir para o desconhecido, de arriscar, a luta. aos que ficam, a coragem do que já conhecem, a resiliência. uma certeza porém: o livro somos todos nós que o escrevemos.


open. vancancy. lights, please
senti-me como se voltasse a ter vinte anos. senti-me como se estivesse a quebrar as regras, e estava, aquelas impostas pelo mundo dos outros. e as minhas regras, as que me imponho também, de certa forma (estas sim, tão mais difíceis de quebrar). estava decidida. fui furtiva na abordagem, deslizei tranquilamente pela noite e escondi-me nas sombras dos outros, ocupados nas suas vidas, sempre ocupados nas suas vidas que nem se dão conta do que perdem, de tantas sombras que lhes espreitam por cima do cotovelo. bom, e afinal as regras também foram feitas para ser quebradas (foi a menina que escreveu no livro de história da Terra, eu agora não estou a inventar nada). nos últimos dias as regras têm-me atrapalhado, deixado a pensar se o bem que estou a fazer é a mim ou ao outro e nem sequer sei se vale a pena ter o outro em conta, o que ainda é pior. por isso, subi o muro e passei para o outro lado, onde encontrei nos braços do passado o colo do futuro.

recorta-me
há pessoas das quais nunca me esquecerei e que participaram no meu molde. para além da minha mãe e do meu pai, cujos parâmetros em que me influenciaram são bem mais evidentes e de efeito prolongado, tem sido um trabalho muito compensador ver as definições cada vez mais de perto, o detalhe, o rigor com que todos os meus traços de personalidade se definem através das pessoas com quem me relaciono. essas pessoas, algumas que ainda permanecem na minha vida e continuo a aprender com elas, outras que já não sei onde estão (sorrio ao recordar-me), ou ainda aquelas que vi apenas uma vez, uma-vez. houve pessoas com quem só estive uma vez e que bastou para que me salvassem das armadilhas do ego.


("...and then she grew up")
ultimamente oiço falar muito na cor dos sonhos. ou ausência dela. eu não sei se sonho a cores ou a preto-e-branco. e sempre que me deito, determinada a levar essa tarefa comigo no sono, acordo novamente sem saber. não faço a mais pequena ideia se os meus sonhos são coloridos ou da cor dos filmes antigos, também é bonito, aquele preto e as variações todas do cinzento e o branco muito branco. a verdade é que não sei e sinto-me frustrada por não me lembrar, nem mesmo quando acordo já lançada de caneta em punho para escrever o que sonhei, dizem que é assim que nos lembramos dos sonhos. talvez não me lembre da cor dos meus sonhos porque vivo num. cá em baixo, a escrever as estórias da terra, chocando os meus sapatos vermelhos um contra o outro.


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