Monday, October 15, 2012

por Ana Rebelo

A intemporalidade



o-brilho-dos-olhos
aos 14 anos disseram-lhe 'nem todos têm de ser doutores.’ e ele que não gostava nada de estudar!... aquilo foi música para os seus ouvidos. era um miúdo esperto, sem ser muito aplicado conseguia o que queria quase sempre e quase sempre saía bem no figurino. nem chegou a frequentar o 12º ano. o plano era comprar rapidamente a sua independência. ter um trabalho que lhe permitisse ser livre, que o ajudasse a acalentar todos os sonhos até conseguir transformá-los em mais do que ilusão. a pressa em viver era muita.


mulher-séria-não-tem-ouvidos
entrou na sala, logo atrás daquele homem que não parecia ter muito boas maneiras 'entra, entra. importas-te que fume? bem, a pessoa que eu procuro tem de estar sempre ao meu serviço, por exemplo, ir buscar-me os fatos à lavandaria e alugar-me uma call-girl se for caso disso'. aos 35 anos estava novamente à procura de trabalho. o administrador para quem trabalhara tantos anos tinha falecido e não havia mais lugar para ‘secretárias antigas’. aos 35 anos já tinha trabalhado treze anos, dos quais nos últimos quatro, também a tirar uma licenciatura. o seu sonho era ser gestora de recursos humanos. era a sua terceira entrevista e decidiu que não queria ser selecionada.


pela-boca-morre-o-peixe
‘eu sou o maior’, disse-o convictamente em frente ao espelho do elevador, enredado na sua música suave. os seus dentes eram brancos, o nó da gravata, impecável. ‘tu és o maior’, repetiu a si mesmo, reflectido no espelho. entrou em casa, o silêncio. depois de um dia frenético no escritório, das palmadas nas costas, dos elogios dos colegas, o silêncio. ‘vamos celebrar?’ disse para o retrato que estava em cima do piano, eram os seus pais. e o copo vazio logo se encheu de bolinhas esfusiantes. sempre desejou aquela promoção. agora tinha tudo o que queria. A cidade iluminava-se para si e o champagne acabou. tinha 46 anos e não havia canto do mundo ao qual não se tivesse habituado. excepto ao silêncio da sua casa.


nariz-arrebitado
‘sabe, eu queria muito ter sido Mãe’. os seus olhos confirmavam-no, mas logo se apagavam, resignada. ‘tenho aprendido tanto com a vida!... não sou uma mulher amarga, nem infeliz, pelo contrário. vivi tudo, vivi tanto e com tanta garra. fui sempre dona das minhas convicções. tomei opções. fossem quais fossem, na altura pareceram-me as correctas. não foi a vida que me faltou, fui eu quem a escolheu.’ tive a nítida impressão de vê-la sorrir, à medida que se recostava na cadeira. Era linda aos 65 anos. 


mãos-de-tesoura
quando casaram queriam apenas ser uma família. construir um sonho. casaram logo depois de terminarem o curso, os pais ajudaram com a entrada para a casa. Depois ele foi estagiar para um escritório de advogados, diziam que era um advogado promissor. quando foi Pai os colegas até lhe compraram uma garrafa de champagne e charutos para fumar. um dia chegou ao escritório e tinha um email a avisar que tinha de apresentar-se no gabinete dos recursos humanos às 15h. era o primeiro dia de escola do seu filho.


(estratosfera)
há dias de muito medo, confesso. quando converso com pessoas muito mais velhas, elas parecem nunca ter sentido este medo, mesmo quando a vida se lhes tornou mais dura. depois lembro-me que o medo é uma criação do nosso imaginário, o bicho-papão que nos impingiam quando queriam que comêssemos açorda ou fossemos para a cama às oito da noite. STOP. há uma força imbatível que nos tem mostrado que, a partir de determinada altura, só pode ser melhor. Dá para começar de novo?

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