Monday, October 8, 2012

por Ana Rebelo

a-ver-se-te-avias


alma

ela voltou. com a mesma camuflagem que só alguém que ela queira consegue desmanchar. falou-nos de si, contou-nos estórias. anda a ler um livro, um livro de que agora não me recorda nem o nome nem o autor. mas lembro-me de uma dessas estórias, uma das que vinha no livro e que ela partilhou como um tesouro bem guardado. vou tentar contar como me lembro. em tempo de pós-guerra havia uma taberna que só servia cebolas aos seus clientes. sim, cebolas. cebolas cruas, uma tábua com diferentes formatos em cima de que cortar e uma faca afiada. as pessoas chegavam, sentavam-se e era-lhes servida uma cebola que elas cortavam, cortavam até ao fim - e apesar de saberem porquê, teriam medo, de certeza, medo de descobrir e revelar as suas fragilidades - mas elas seguiam cortando, certas de que o que quer que fossem enfrentar, seria um pesadelo muito menor do que aquele que viviam.


música
ao cortar a cebola as lágrimas começavam a escorrer pelos rostos pálidos e inexpressivos e palavras de desabafo corriam pelas bocas afora, assim, como se esperassem há muito. quando se vive a angústia das memórias temos de torná-las presentes para que consigamos libertar-nos. da angústia, não das memórias, que essas querem-se como este livro, daqueles que mantemos à cabeceira e que relemos de quando em vez e que nos faz contar estórias e gostar delas. gostar de nós. continuando, um pouco de tempo depois que leva a cortar uma cebola, quando já todos choravam e conversavam uns com os outros, estranhos, conhecidos, pessoas ao acaso, a orquestra começava a tocar finalizando a purga. era então aí as pessoas levantavam-se e iam-se embora, deixando lugar aos próximos clientes. na minha imaginação chamei-lhe a Taberna das Lágrimas. ela disse que nunca mais cortaria cebolas como antes.


o sorriso
podia ser pior. podia ter inventado mil desculpas e coisas para fazer. disfarcei com suspiros profundos e tremidos. mas não tinha como, aquele nó apertado na garganta não me deixava engolir mais nada, lá vêm elas, as lágrimas, querem sair. não havia ninguém à volta, ninguém que as testemunhasse e por isso, não havia mais desculpas e deixei-me ali, a chorar. chorar é bom, chorar faz falta. diz-se. eu chorava mais do que choro e não sei porquê. eu falava mais do que falo e ouvia menos do que oiço e não sei porquê. eu desabafava as minhas angústias mais do que desabafo e não sei porquê. mas se tornar tudo presente, as angústias, consigo saber. um dia podíamos criar a nossa taberna-das-lágrimas, disse ela. a estória das cebolas que fazem chorar quando não conseguimos chorar, de uma simplicidade tão absurda e ao mesmo tempo tão acolhedora, tão serena. talvez fosse o regresso, o regresso que sempre traz a expectativa de decisões e mudanças. podia ser pior. podia chegar ao último copo de vinho e não ter nada para sentir.


the-yellow-brick-road
'procurar o caminho'. fazemos retiros, caminhamos lonjuras e vamos para sítios bonitos. dizemos que é para pensar. para 'procurar o caminho'. quando começamos a viagem a nossa preocupação reside em começar a pensar, pronto, começa agora, 1-2-3-vou-parar-para-pensar. isto escrito soa tão mal quanto dizê-lo alto. soa (acabo de dizê-lo e é como se fosse um eco, nada de novo vem, somente uma intenção). não compreendo o caminho como uma descoberta empírica que cumpre uma série de requisitos nesse tal contexto que é o nosso e que queremos mudar (na maioria das vezes, é por isso que decidimos 'procurar o caminho'). essa tomada de consciência não será já o início de um novo caminho, um aviso de que tudo o que somos nesse momento é um veículo para a mudança e nada mais? de repente, estamos tão obcecados com isto que não prestamos atenção às estrelas cadentes. também não choramos. nem sequer ligamos aos outros ou temos a possibilidade de reconhecê-los. encontraste?... ah ... distraí-me a procurar.


carícias
caminhando se encontra. na taberna-das-lágrimas refugiamo-nos da angústia, da opressão de quem nos impõe regras que não podemos aceitar, de quem nos esmaga o coração, do que nos mata a vontade. na taberna-das-lágrimas não procuramos nada a não ser o que se nos revelam, numa palavra inesperada, num olhar subitamente nublado, num abraço de alívio. paradoxalmente, seria no meio do caos que as emoções deviam atingir o seu expoente máximo. é sempre quando nos sentimos perdidos algures pelo caminho (ou sem caminho) que os sentimentos nos engrandecem. qualquer busca passa por viver apenas aquilo que é verdadeiramente bom e que prevalece como autêntico e único. um carinho de uma Mãe, o riso de um bebé. é no caos que as grandes paixões se acendem e que os desejos de partilha acontecem sem querer, querendo tanto. acredito que estamos todos perdidos. a viver o caos e sem o ombro do amor. porque esse, ele, o amor, também anda a 'procurar o caminho'.


(suor e lágrimas)
horário de funcionamento da taberna-das-lágrimas: todos os dias, slots de meia hora por dia a qualquer hora. em qualquer ombro por perto. se não tiverem um ombro por perto, agarrem-se aos vossos joelhos e lembrem-se como eles vos têm segurado de pé.

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