Monday, April 23, 2012

por Ana Rebelo


mal-disposta da cara



visão periférica
lembro-me de estar na sala de aula e de por a mão no ar em resposta a uma afirmação peremptória do professor "Vamos pegar num exemplo simples, uma coisa de que todos gostam, por exemplo, Coca-cola!". instintivamente, pus a mão no ar. e imediatamente todos os olhares se voltaram para mim. percebi, já naquela altura, que dizer a verdade sempre merece algum tipo de castigo já que fui cruelmente catalogada de "não-cool", que é a pior coisa que nos podem fazer na adolescência. a ousadia já me pressentia e voltou a manifestar-se incómoda mais à frente, quando pus a mão no ar em várias reuniões de trabalho, em algumas conversas familiares ou entre amigos para firmar a minha posição, e a verdade voltou a pisar-me os calos com a diferença de que hoje em dia não saberia viver que não em verdade e em consciência da mesma, até no seu mais profundo negrume. desde aquele dia que acalentei o desejo de trabalhar na Coca-cola precisamente por acreditar que defender algo de que não gostava seria o maior dos desafios, e não gostar não quer dizer que não seja verdadeiro. e fiquei contente quando vi esta semana a nova campanha da Coca-cola na Austrália. e mais contente ainda por saber que não é um consumível bruto down under como nas Américas. mas o que me deixou mesmo contente foi que não preciso gostar de Coca-cola para me identificar com uma Marca que é genial porque me continua a desafiar pelos seus valores. um deles, a ousadia incómoda da verdade.


orelhas moucas
estou seriamente a considerar colocar um livro de parte (ontem). coloquei um livro de parte (hoje). não vou nomeá-lo porque me parece deselegante, não quero causar dúvidas naqueles que sei, gostaram de ler este livro e sei que foram muitos. quebrei um compromisso. mas é sempre melhor isso do que a ilusão de uma possível felicidade se andarmos um-pouquinho-mais-pr'á-a-frente . nunca o fiz e quase que me sinto infiel a um conjunto de páginas que ainda faltavam e que imploravam para ser lidas. mas era mesmo isso, era quase que um grito surdo "lê-me, lê-me" que lhes retirou toda a magia. e pus-me a pensar que tenho tantos livros que ainda quero ler e mais aqueles que andam lá por casa nas prateleiras e no chão em cima do tapete, à espera da sua vez. não podia empatar a minha vida num livro cuja cumplicidade não existe. em algo que se quer de desejo e o qual ansiamos devorar às primeiras páginas e saborear na calmia das páginas seguintes até ao final, e no final... no final sentir que valeu a pena. porque embora não estejamos destinados a ficar juntos, valeu a pena. perdoa-me livro, mas nunca poderei abdicar dessa conquista, desse enamoramento espontâneo que é ler cada linha sem querer saber o fim, e por isso coloquei-te de parte na minha vida.


na boca, o poema
Florbela, de Vicente Alves do Ó. a sala estava vazia. a sessão, das 19h no El Corte Inglés. a sala estava vazia. a próxima sessão era só às 23h55 e fez-me logo lembrar os horários do Expresso para Beja que escasseiam mas onde existe um aeroporto. é certo que quase ninguém consegue apanhar a sessão das 19h e agora com tantos canais temáticos e video-on-demand já não há quem nos tire de casa às 23h55 num dia de semana nem mesmo se sofrermos de insónia. a sala era grande e estava vazia. certamente porque continuamos a partir das premissas erradas para medir o sucesso do cinema português e os horários de exibição deste filme constituem prova disso, quanto a mim, inequívoca. não me interpretem mal, eu estava contente por poder ir à sessão das 19h e ter a sala só para mim mas não consigo perceber como pode uma sala estar vazia perante um filme tão cheio. existem questões sobre a sua exactidão biográfica mas este filme não é biográfico, é mais do que isso, é um filme belo. o destino final de um amor eterno e perigoso, é belo. "Aqueles que me têm muito amor//Não sabem o que sinto e o que sou...//Não sabem que passou, um dia, a Dor//À minha porta e, nesse dia, entrou." o sofrimento que gera insegurança que gera insatisfação, o desassossego no olhar contemplativo, são belos "E é desde então que eu sinto este pavor//Este frio que anda em mim, e que gelou//O que de bom me deu Nosso Senhor!//Se eu nem sei por onde ando e onde vou!". A loucura de quem vive enclausurada em si mesma e cujo pecado é a redenção, é belo "Sinto os passos de Dor, essa cadência//Que é já tortura infinda, que é demência!//Que é já vontade doida de gritar!" e finalmente as palavras que suponho, as palavras que suponho atormentadas, mais atormentadas ainda do que a própria vida, são belas "E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio//A mesma angústia funda, sem remédio//Andando atrás de mim, sem me largar!". e até na morte anunciada debaixo de um chaparro magestoso, encontrando-se pela primeira vez. é muito belo.


odor de corpo
acaba de me ligar uma Amiga que já não vejo há algum tempo. curiosamente, trago posto o anel que ela me ofereceu quando fiz 23 anos e já passaram uns bons quantos. uma das coisas que mais recordo dela é o seu cheiro, como uma brisa que passa devagar mas permanece quando fecho os olhos e me lembro da suavidade da sua pele morena depois de seca ao sal do mar. os cheiros são muito importantes na minha vida, como legendas imaginárias que definem, lembram, rejeitam emoções que não sei de que outra forma as poderia definir. como a tua pele e a forma como se deu à minha, os lugares onde fui, feios e bonitos, as pessoas com quem me cruzei, feias e bonitas. um dia num momento importante da minha vida em que pedi expressamente que não me avisassem da sua presença, reconheci a minha Mãe pelo cheiro dela assim que entrou na sala, meu Deus eu soube, é a minha Mãe! nunca o previra. quando a minha Amiga ligou senti esse mesma emoção de uma só pessoa num só lugar, tão acolhedora, das amizades que permanecem para além do tempo e das restrições que impomos à vida. fecho os olhos e inspiro.


ter tacto
gosto muito de alguns blogs de moda, mas daqueles blogs que não nos impõem moda e sim que retratam a moda através de pessoas comuns como nós. gosto muito de andar na minha moda, de vestir verdadeiras peças vintage descobertas por acaso no malão de roupa que "era para dar" (felizmente, salva a tempo!...), de misturar cores imprevisíveis, de arrojar sem sair dos meus limites porque há coisas que estão na moda mas não estão na minha moda. gosto de pensar que a moda é um prolongamento daquilo que me define enquanto mulher que gosta de um trapinho como any girl next door. gosto cada vez mais da moda que se vê nas ruas e nas pessoas e da forma como começam a perceber-se através dela. inspiram-me as pessoas na sua moda. a minha moda não é apenas um statement e sim eu, e sem ser eu seria uma perfeita desconhecida a andar pelas ruas do Chiado e não sou. sou eu e a minha moda a andar pelas ruas do Chiado e a inspirar outras modas. recomendo: "The Sartorialist", o nosso "Alfaiate Lisboeta", o "My Closet" da minha querida Marta Fragateiro e "A Girl Gotta Have Paraphernalia" da minha trend-setter preferida.


(a intuição não mente)
tenho muito a mania(?) de dizer "tens de querer muito". tens de querer muito emagrecer. tens de querer muito realizar-te na tua profissão. tens de querer muito acordar cedo. tens de querer muito alguém. digo-o nas mais diversas circunstâncias, cheiros e pessoas. e digo-o muitas vezes a mim mesma. por vezes achamos que queremos muito uma coisa e quando ela acontece não nos traz a sensação única de chegar à meta inteiros, depois de uma corrida suada e cheia de obstáculos. e ficamos frustrados porque afinal não era nada daquilo, sentimo-nos confusos, hesitantes e inseguros quanto à próxima etapa que queremos atingir, retirando-nos, ausentando-nos de nós mesmos. analisando esta frase como se estivesse a dissecá-la em cima de uma marquesa, está tudo dito. querer não é desejar. senão vejam: DESEJO emagrecer. QUERO emagrecer. DESEJO-te. QUERO-te. qual delas é a mais poderosa? nenhum caminho é errado, mas pode sempre ser mais curto - ou mais longo, conforme o que desejamos e queremos.

1 comment:

  1. visão periférica
    A Coca-cola não se vende como uma bebida gaseificada, vende felicidade num frasco. Bebericar dessa felicidade é muita bom! Principalmente quando sentes as borbulhas do gás a rebentar na ponta do nariz num dia quente de Verão. Tão bem quanto levantar a mão e dizer aquilo que nenhuma cabeça naquela sala havia pensado, quanto mais ousado, dizer!

    Orelhas moucas
    Todos nós colocamos capítulos, livros e autores de parte! Não são quebras, são escolhas. Há que não dar continuidade ao que não nos faz feliz.

    na boca, o poema
    Adoro a personagem, a pessoa, Florbela. a sua doce infelicidade, crua e sentida no âmago do seu ser fascina-me!

    odor de corpo
    amizade, mais nada!

    ter tacto
    há pessoas que se safam, e outras que não!
    Tão simples quanto isso.
    Quanto ao Paraphernalia, não é - ou não devia ser - um espaço meu, mas nosso. De todos aqueles que ousam, que misturam, que se sentem bem com um trapinho descoberto nas malas que eram para dar.
    É o espaço de todas nós!

    (a intuição... ahhh maldita!)
    Há um abismo entre desejar e querer. Há uma intangibilidade intrínseca nos desejos, mas no querer está o suor do trabalho, do esforço, das batalhas e da vida!
    Desejamos muito, queremos parte disso!

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