Wednesday, May 2, 2012

por Ana Rebelo

efeitos secundários



olhar marejado
às vezes temos razão e perdemo-la, pela forma eruptiva e inconsequente como dizemos certas coisas. pensamos que a nossa razão justifica tudo, magoar o outro torna-se numa missão cega. quase nunca temos a noção do quanto podemos estar a ser injustos, mesmo que cheios de razão. será demasiado sobre-humano ter esta lucidez? mesmo que não seja imediata, existe a inocência até prova em contrário e sendo assim, nada melhor que uma conversa franca para dissipar quaisquer mal-entendidos. um dia alguém me disse que as palavras são setas atiradas que não voltam e nesse mesmo momento fui atingida por uma. eu respeito muito as palavras e uso-as para pintar toda a minha vida e um mundo que me rodeia. respeito-as e por isso, tento preservá-las na sua origem para depois não ter de as subverter para que se compadeçam com os meus actos. e como todas as pessoas de carne e osso e entranhas eu nem sempre escolho as palavras certas, podendo dar-lhes diferentes significados na minha tela que o outros podem não compreender ou gostar. haverá maior inocência que esta e ao mesmo tempo, maior perigo? gosto de me entender sem palavras quando os sentimentos são genuínos.


ouvir em stereo
existem sempre dois lados. duas versões. lado A e B, como nos discos de vinil dos anos 80. filmes a preto-e branco e filmes a cores ou então com uma tela em frente do écran que lhes dava um pálido contraste azul (lembram-se?...). na vida nunca nada é a preto e branco. sim, já sei, verdade de la palisse mas o que é certo é que é muito difícil para nós discernir esta palete intermédia de cores que podem não ser só o cinzento. nem sempre somos justos com a vida que levamos, não fosse ela resultado daquilo que somos e do que fazemos para que ela seja como é. gostamos de culpar os políticos, o tempo, os chefes, o carteiro que entrega a carta do IRS, a EDP e os chineses, o Manuel Moura dos Santos, a bolsa, os árbitros e treinadores, os mestres e doutores, os empreendedores e idiotas deste mundo, enfim, todos são protagonistas do nosso infortúnio quando na verdade só nós somos responsáveis pela vida que levamos e pela vida que queremos ter. interpretem isto como quiserem, afinal, existem cores inimagináveis entre nós.


falar livremente
no 25 de Abril eu estava na barriga da minha Mãe. gravidíssima, nem ela nem o meu Pai arriscaram vir para a rua quando se iniciaram os primeiros tumultos. havia um rádio que ia dando notícias, as pessoas estavam muito expectantes. hoje, ela diz-me que na altura a sua consciência política era menos desperta e que o facto de ter nascido por terras da Beira Baixa também a distanciavam da ditadura tal qual como a venho percebendo, através de documentários, livros e outras histórias pessoais. ainda bem que ela não tinha a consciência política que tem hoje porque não quero imaginar as possíveis consequências nefastas na vida dela, eu tenho a quem sair e ela é daquelas que diz o que tem a dizer. as palavras proibidas, os livros censurados, a prisão e a tortura, a guerra colonial, o exílio. estas são realidades que quer queiramos quer não, e por muito revoltados que estejamos com a democracia podre que hoje vivemos, aconteceram. aconteceram a tanta gente que nunca foi político ou capitão de Abril ou figura pública. aconteceram a muita gente como eu e tu porque em ditadura não há pessoas e sim ameaças. entendo que nada se possa igualar a um regime fascista. eu quero poder estar aqui a escrever estas palavras e vocês podem escolher lê-las ou não. eu quero poder ler sobre qualquer outra facção política, religião ou história e outros, poderem contá-la. eu quero expressar-me nas redes sociais, eu quero manifestar-me nas ruas, eu quero dizer coisas cujas consequências sejam única e exclusivamente da minha responsabilidade. eu quero e eu posso. e este poder de querer intencional e de direito de cada um, de direito de cada um, só pode ser exercido porque vivemos em Liberdade. porque há 38 anos atrás lutámos por Ela como direito inalienável que é. viva o 25 de Abril sempre.


cheirar os outros
começou esta semana o Festival de Cinema Internacional, o Indie Lisboa. Aplaudo em pé estas iniciativas e fico feliz por continuarem a perdurar numa altura em que parece que a cultura se tornou acessória. para muitos este é encarado como cinema armado-em-pseudo-intelectual só porque as salas são mais eclécticas (leia-se, têm menos receita!...) e não se vendem pipocas lá fora (leia-se, há gente que não gosta de comer pipocas no cinema!...) mas isso é só porque as pessoas temem o desconhecido. eu sou pouco cinéfila de conhecimento, apenas de intuição. nestas alturas ando sempre a chatear quem sabe para me orientar num programa que é vasto e riquíssimo mas também gosto muito de me aventurar num filme sobre o qual não saiba grande coisa e deixar-me enredar num conjunto de sentimentos contraditórios. dizem que a maior parte dos filmes europeus são cinzentos e crus, demasiado realistas. mas a nossa cultura é assim, longe das americanadas que terminam sempre com finais felizes. para mim conhecer este cinema é sentir o pulsar de outras gentes e formas de vida através da expressividade da imagem, dos lugares e das pessoas. e das palavras que dizem e ficam por dizer, claro. gosto de aventurar-me em território desconhecido. até agora, tenho-me surpreendido. e aprendido.


tocar no rosto
existe um dia Mundial do Livro, viva! eu não sabia e fico contente com tudo o que envolva livros, sabem como gosto deles mas acima de tudo o mais, eles gostam de mim e aturam-me incondicionalmente mesmo em todos os momentos em que não me apetece aturar ninguém "os amigos são para as ocasiões", já diz o ditado. agora estou a ler "Clarabóia" de José Saramago, aparentemente o primeiro livro que escreveu. e estou a gostar muito - o que é estranho à partida, num Saramago, mas este destaca-se logo por uma escrita muito mais acessível, sem grandes parágrafos e q.b de vírgulas. Outros livros há que me marcaram muito mas só vou mencionar um, apenas um, somente um, único e grandioso: "O Principezinho", de Antoine de Sait-Exupéry. é a minha bíblia, o meu mantra, o meu osho, o meu manual de vivência. deixo-vos uma passagem: "É preciso teres muita paciência. Primeiro, sentas-te um bacadinho afastado de mim, assim em cima da relva. Eu olho para ti do canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto... ". se ficares por perto, deixo-te tocar-me.


(nó na garganta)
sempre aprendi muito com a sabedoria popular. porque todos os nossos ditados são de uma lucidez estupidamente absoluta. "depois da tempestade vem a bonança", "gato escaldado de água fria tem medo",  "a homem agradecido, todo o bem é devido." e por aí em diante e o que faz deles ainda mais populares e sábios é a livre interpretação que deles podemos fazer. mas só essa nuance dita toda a diferença entre mim e ti e é nessas diferenças que vivemos e devemos respeitar-nos. se para mim dizer "quem espera sempre alcança" não é certamente ficar sentada à espera que me caia a sorte ou a benesse do amor ou o dinheiro e tudo assim de mão-beijada, para outros pode ser através da espera por um destino certo que chegarão ao paraíso. são essas diferenças nas quais vivemos o que nos torna únicos e ser único é viver na liberdade de ser quem se quer ser.


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