Monday, May 21, 2012

por Ana Rebelo

adiante




num piscar de olhos
um amigo disse-me outro dia "tu tens aquele ar de Sex & the City com um misto de girl-next-door". sorri sem qualquer desconfiança, talvez por alimentar a ideia romântica de que é interessante numa mulher o dualismo entre a sensualidade natural e por isso explícita, e a sensibilidade de quem busca um amor verdadeiro. isto tudo por causa de um "era-uma-vez" que me aconteceu e que ainda me faz pensar em como se tomam decisões sentimentais com tudo menos com o coração. aliás, em como se tomam decisões sobre o que ainda não há para decidir, simplesmente porque o tempo não chegou e só conhecemos ainda o encanto irresistível da pessoa que construímos na nossa cabeça. nestes momentos de avaliação do outro o nosso coração passa por um misto de dor e de prazer, um sentir contraditório entre a possibilidade de sofrer e o querer imediato de possuir o outro, sem piedade. naquele momento crucial em que a nossa cabeça não devia pensar é quando se põe a predestinar o que nenhum dos dois pode ainda adivinhar sequer. e a menos que já tenha havido traição antes e afinal aquela pessoa não seja nada do que esperávamos, a verdade é que é na pele que sempre se revelam as intenções mais reais, como numa primeira impressão que só tem uma hipótese de o ser.



ouvir barbaridades
no fim de semana gosto de fazer do pequeno-almoço um ritual demorado, prazeiroso. é sábado e acordo despenteada. faço paragem obrigatória e sigo descalça para a cozinha a pensar porque é que todas as mães dizem que não devemos andar descalços no chão (há outro sítio por onde andar sem ser no chão?...) mas que é tão bom andar descalça. a cozinha inunda-se da luz do sol do meio da manhã. espreguiço-me com movimentos lentos e quase coreografados, estico-me toda até ficar em bicos de pés e fazer uma vénia de bailarina para saudar o meu novo dia. torro duas fatias de pão de soja, tiro a compota de morango e a manteiga e o sumo de laranja do frigorífico, e alcanço uma peça de fruta do cesto de metal branco. hum... perfeito. sento-me e ligo a televisão para me inteirar do mundo na esperança de que finalmente alguém tenha descoberto a cura para o cancro, e o dia assim, continuar ainda melhor. já vou na segunda fatia de pão e dou mais uma trincadela gulosa, desta vez de olhos fechados para prolongar o sabor do doce misturado com a manteiga e oiço aquilo que me causou azia para o resto da semana. o nosso Primeiro a falar. e quase sem me esforçar praguejo, blasfemo, pronto, digo palavrões feios, mesmo feios, ó-seu-cabrão que me fazes engasgar com as atrocidades que dizes, como se tivesses o direito de interromper o meu pequeno-grande-almoço para insultar-nos a todos, como se fosses intocável no teu papel de mandante neste país de pequenitos como tu. caro Primeiro, dá lá uma oportunidade ao teu assessor de imprensa que ele precisa de uma. aproveita, e dá-nos uma oportunidade também.


dar à lingua 
isto de escrever todas as semanas para alguém que não é escritor é mais que um desafio, é uma dor na alma. a meio da semana já ando a pensar se tenho alguma coisa para dizer e parece-me sempre que nada, não tenho nada para dizer, pronto, é desta que a fonte secou. a minha vida é tão normal como a de qualquer pessoa não tão normal quanto isso, vou trabalhar, trabalho uns dias melhor que noutros, sorrio mais nuns dias do que noutros, vou para casa, às vezes não vou para casa, vou ao cinema, janto fora, leio livros, também digo palavrões feios, falo com amigos, gosto de ver a lua do telhado da minha casa, lavo os dentes três vezes por dia, mas e o que é que isto pode interessar a alguém? depois há sempre aquela questão do eras-tu-ali-naquele-texto? e confundem-se as pessoas que esperam tudo de nós. sim, o mundo existe em nosso redor para que possamos nele absorver de tudo e alimentar as ambições destas criaturas que escrevem como se não houvesse amanhã, pois sem esse treino não é possível exercer a escrita. já se sabe que as coisas mundanas são as que mais interessam a qualquer pessoa, mas temos nós o direito de vos tornar cúmplices de todos os nossos devaneios, de todas as nossas opiniões pessoais e sobretudo, dos nossos egos? e não estou a falar-de-ninguém-em-particular.



cheira-me a esturro...
na verdade, o que ele me disse foi algo até muito bonito. cruel de tão bonito. qualquer coisa como "tenho os pés frios" e que me fez pensar em como aquilo tudo parecia um filme. estávamos nus, deitados depois do sexo e os nossos corpos mal cabiam lado-a-lado. ele fazia-me festas no ventre, ao de leve, e com o seu dedo delineava o meu umbigo, e aquela imagem de nós dois poderia ser uma projecção da televisão ligada no escuro. o nosso suor ainda não tinha secado e foi então que ele me disse qualquer coisa aparentemente bonita, bonita e tão cruel, e eu emudeci, confirmando aquilo que tentei tanto contrariar - o sinal do coração. de repente, o que ainda não era já nunca mais podia vir a ser e arrepiei-me, agora estava ainda mais despida e sem nada que me pudesse proteger da ilusão de felicidade, essa arma pronta a disparar e apontada para mim e que me acertou em cheio.



sem dedinhos para tocar
fiquei feliz com a ideia concretizada da iniciativa "Zero desperdício", cujo slogan bem esgalhado é "Portugal não pode dar-se ao Lixo". uma iniciativa criada por um comum cidadão que mostra que quando queremos realmente contribuir para uma causa maior, tudo pode ser possível. fui ver o site, que por sinal está muito bem construído, queria saber mais sobre esta ideia e eventualmente, como participar dela. mas arrependi-me porque fiquei desapontada como quando uma migalha de pão com doce cai dentro do leite e depois já não consigo bebe-lo. disseram-me que foi pra'aí um escândalo por causa do tema mas eu não dei por nada, o que me faz pensar que afinal não estou assim tão dependente do Facebook ou de qualquer outro meio de intoxicação informativa. pois então, esta iniciativa nobre tem uma letra criada pelo não menos nobre Tim que todos conhecemos do "ai-a-minha-vida" e bem que pode dizê-lo porque se espalha logo ali quando diz "(...) o que eu não aproveito ao almoço e ao jantar/ a ti deve dar jeito...". Ó meus amigos, Portugal não pode dar Lixo, era isto que deviam saber.




(só sei que nada sei)
e como não há oportunidade como o desemprego, um sr. engenheiro electrotécnico ganhou este ano o prémio Leya. escreveu um romance nos dois anos em que esteve sem trabalho, dois anos, sabe Deus as motivações que resistem a dois anos de desemprego. mas o que é certo é que este sr. engenheiro electrotécnico escreveu um livro e mais, ganhou um prémio. estou roída de inveja boa deste bravo sr. do mundo das ciências que deu à pena e fez aquilo que muitos de nós das letras não conseguimos fazer. este sr. tem a minha admiração e respeito pela coragem que é estar sem trabalho e pela coragem que é escrever um livro, ambas muito difíceis. e no meio de toda esta euforia, então não é que o sr. mandante do portugal dos pequenitos sempre acertou e somos mesmo uns piegas que quando ficam desempregados têm oportunidade para escrever livros? pois é. agora, muito provavelmente, o sr. engenheiro electrotécnico se for esperto vai seguir mais um dos sábios conselhos do Primeiro e emigrar, para ser mais um Português a vencer lá fora.



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