Monday, May 14, 2012

por Ana Rebelo

futurologia



olhos bonitos de espanto
na peregrinação que fiz acompanhavam-nos três padres: um jesuíta, um franciscano e um daqueles ditos "normais" com a gola tradicional dos padres que não sei de que ordem seria (aprendi que existem tantas ordens católicas quanto rankings militares, ou mais). não vou agora debruçar-me acerca das minhas convicções religiosas-ou-não ou por que fui peregrinar mas o facto é que as carreiras também se desenham para os seguidores de Deus. e também existe certamente a diferença entre aqueles que o seguem sem questionar nada e aqueles que o seguem pondo em causa uma série de requisitos para pertencer ao clube e fazer dele um clube com mensalidades mais atractivas. cada um destes padres era um homem, acima de tudo. depois de serem homens, eram uma história de vida e cada uma das suas vidas, uma aprendizagem. um era de meia idade e muito divertido e assim que o vi senti nele uma alma homónima e cheia de luz que me serenou desde o primeiro minuto. o outro era o mais velho e que não falava, declamava, quase a fazer 50 anos de carreira nos mais variados países e com as mais arriscadas missões, tinha uma barba branca muito comprida e farfalhuda e foi fácil imaginá-lo à minha espera nas portas do céu em jeito de mestre de cerimónia. finalmente o padre mais jovem, mais jovem do que eu e que me deixou a pensar na grandiosidade que é preciso ter e que manda que se abdiquem dos hábitos mais mundanos (e humanos) pela abnegação e amor ao próximo. é caso para dizer que ainda há quem trabalhe por vocação.


surdo como uma porta
na melhor das hipóteses tenho mais uma metade e-qualquer-coisinha-de-vida-igual-a-esta-que-já-vivi e metade dessa mesma para trabalhar. hoje em dia já não há carreiras como no tempo dos nossos pais, anos e anos na mesma empresa e com oportunidade e espaço para crescer e aprender a fazer coisas diferentes, pelo menos esse foi o exemplo que tive em casa. a minha Mãe era ávida por desafios, por se superar e fazer melhor, arriscando ser sempre quem era e fez um caminho profissional do qual me orgulho muito e que é uma referência para mim. trabalhou a sua vida-igual-a-esta-mais-um-bocadinho-da-outra numa grande empresa que hoje em dia já só é grande em tamanho. ao contrário do meu Pai, mais acomodado no seu posto de trabalho mas contente com a sua profissão de desenhador-industrial, podem ver-se ainda algumas das suas obras ali nas docas dos contentores que chegam de todas as partes do mundo. mas havia este denominador comum, a capacidade de sentir em cada uma destas opções uma tranquilidade real e apaziguadora, que hoje é pura ilusão. hoje em dia há mais empresas, há mais profissões e mais cargos, há mais indústrias e mais mercado, mas há muito menos oportunidades de encontrar este trabalho único e duradouro que nos desafie e nos traga ao mesmo tempo a certeza de que iremos voltar por muitos e muitos mais anos. hoje em dia aquilo que querem de nós é totalmente diferente daquilo que achamos que esperam de nós. hoje em dia vivemos no drama dos opostos, ou somos demasiado novos com muitos estudos e pouca experiência ou demasiado velhos e qualificados aos 40 anos ou demasiado qualquer-coisa-vale. já não existem carreiras e ainda bem se levarmos a palavra à letra, pois mostra que somos cada vez mais polivalentes, proactivos e criativos na forma como vivemos o nosso trabalho, procurando nele o prazer e não apenas a necessidade. a parte mais difícil está em gerir um futuro que é tão incerto como o tempo.


caladinho que nem um rato
também o São Pedro anda em gestão de crise. não há maneira de ter verão que dure por 3 meses seguidos nem inverno que se conforme com a redução de horários a que o sujeitaram, fazendo com que se atrasasse todos os dias antes de chegar realmente. já para não falar no despedimento da primavera, a primavera com o seu cheiro tão característico e sempre vivida intensamente, abrindo a época dos desvarios do corpo, dos suspiros longamente suspirados e das peta-zetas que começam a estalar mesmo no meio do peito quase quase ao pé do coração. naqueles dias de quatro-estações-num-só-dia ouvimos o tempo a perguntar-nos aquilo que não sabíamos, aquilo que queríamos saber sem a pressa com que habitualmente nos obrigamos a vivê-lo e a entender que de estação em estação nos podemos vir a perder nalguma fracção de tempo que não voltará mais. hoje é Outono e não quero ver a vida a passar-me ao lado.

cheiroso demais
vêm ai os festivais de verão e eu não gosto nada deste tipo de festivais, com a excepção do Festival de Músicas do Mundo em Sines que é um misto de festival com feira hippie onde há sempre com o que nos distrairmos da confusão. sou uma careta de concerto de sala e que está tristíssima por ter perdido o espectáculo de Dead Combo na Aula Magna. há até num desses festivais que têm nomes de marcas conhecidas alguns músicos e bandas que me interessam muito e por quem já pelei em tempos da adolescência para me deixarem assistir aos mesmos, nesses festivais ou noutros que hoje em dia não gosto nada de ir, como os The Cure. chamem-me careta mais uma vez mas não tenho arcaboiço para estar horas nas filas de transito e depois no parque de estacionamento e depois no meio do pó e das gentes aos empurrões. adoro música mas tenho de conseguir desfrutá-la em contexto apropriado e ao ritmo das minhas estações.

toca e foge
a vida. quando achamos que o mundo gira à nossa volta eis que a vida nos dá mais uma lição. a vida é madrasta e mais uma vez só me sai a sabedoria popular, porra para a sabedoria popular num momento como este. mas não sei bem o que mais posso pensar senão na sabedoria popular quando me encontro perante a única antagonista da estória da vida, aquela que é a mais vilã de todas, a mais certa e definitiva, a morte. perante a morte nada parece fazer sentido e ao mesmo tempo tudo fica no seu lugar como um puzzle que encaixa na perfeição. ainda há pouco estava à espera da minha amiga para almoçar neste dia abafado em calor que anuncia tempestade e agora a tempestade cai mesmo em cima das nossas cabeças. ainda há pouco me sentia ressuscitada, de novo em paz comigo mesma e a pensar em como sou feliz por viver e por poder estar ali à espera de uma amiga para irmos almoçar numa esplanada onde se mistura o burburinho das vozes em surdina no segredo de cada mesa, e a tempestade cai mesmo em cima das nossas cabeças. alguém um dia disse que todos os que são bons os leva a morte deixando-nos só quem não faz falta. a vida é madrasta e há mortes inúteis mas em livre-arbítrio somos efémeros, convençam-se disso.


(intuição, para que te quero)
ela entrava em minha casa sem a mais pequena ideia de que era eu quem precisava sair. estava arrasada, sentia-me tonta com o cheiro do cigarro do homem que havia vindo ao meu lado no metro. estava desanimada e sem força mas ela entrou e logo se encheu a sala de frescura e com o entusiasmo de quem conseguiu alguma coisa muito importante. e conseguiu, mesmo sendo quem ela é, sobretudo sendo quem ela é. e imediatamente esqueci tudo, esqueci tudo o que sabia porque era ela quem me ensinava ali, naquele momento bem juntinho à beira do precipício que agora estava ali a viver um momento único e feliz e para o qual contribuí. a vida dá-nos e tira-nos o que tem de ser, às vezes inexplicavelmente e de forma revoltante. mas a vida também nos mostra que se a chamarmos para si as coisas acontecem. celebrei a vida naquele dia, como me lembro de ter aprendido e ensinado a celebrar.



No comments:

Post a Comment