Friday, July 27, 2012

por Ana Rebelo

começar de novo outra vez


olhar
quando era miúda, aí uns seis ou sete anos, a primeira coisa que quis ser foi bombeira. queria salvar vidas, dizia, cheia de um altruísmo que ainda nem sabia que o era nem o que significava, totalmente distraída pelos carros vermelhos e sem a mínima percepção de perigo. adorava carros, sempre fui muito maria-rapaz. depois, ainda no mesmo alinhamento mas já mais menina-que-gosta-de-ir-aos-Porfírios, quis ser juíza. acreditava na justiça, ou pelo menos, naquilo que entendia ser isso e que ainda hoje não sei se entendo bem. sempre as pessoas, sempre as pessoas. quando percebi que para chegar a juíza o caminho era demasiado longo e teórico e eu achava que não ia ter tempo, já achava que não ia ter tempo, finalmente decidi ser comunicadora. gostava de pessoas, sempre as pessoas. gostava de falar com pessoas. na altura, sabia falar mais que escutar e só mais tarde venho aprendendo o poder da comunicação quando se centra mais na escuta activa que nas palavras que tão ansiosamente queremos dizer ao outro. achava que seria uma boa aposta, e convencida de que era isso mesmo, assim me lancei na vida académica, (in)segura de um caminho que não fazia a mais pequena ideia, ainda estava só a começar.



ouvir
a vida é demasiado contemporânea. ouvi esta frase no filme Cosmopolis, que vi esta semana numa das minhas salas de cinema preferidas. guardei-a porque achei que não me tinha dito ainda tudo o que tinha para me dizer. não sei se algum dia conseguirei ver o fim a esta frase e ainda bem. e vim para casa inquieta, os meus olhos brilhavam e eu falava depressa como se estivesse sob o efeito de um psicotrópico qualquer, mas não, era apenas a adrenalina que já conheço tão bem, a dos pensamentos. pensar também é um vício. cheguei cheia de ideias e tinha de pensar em todas elas. sempre fui muito pensadora. começou por ser inconsciente e pueril, achava que todas as coisas que aconteciam mereciam mais de mim. percebi rapidamente que isso era incomportável, como a paixão eterna. agora sei o que todos os pensamentos fazem à nossa cabeça e percebo que nem tudo merece o meu tempo da mesma forma. e a vida tornou-se cada vez mais deste tempo, do tempo que corre deixando para trás tudo e todos. como se as recordações fossem apenas símbolos, evidências de um existencialismo lírico. ontem não conta mais hoje, somos fast-food. temem-se os compromissos com a vida para chegar à conclusão que nunca foi de outra forma. e quando não existe mais forma nenhuma de vivê-la.



falar
aprendi a contar estórias. sem atenção à cronologia e com 'e'. muitos acham que é moda de escrevinhador dos tempos modernos ou quem sabe, uma tentativa de aproximação a um desses escritores mais contemporâneos. mas quem me conhece sabe que sempre foi assim que conheci esta palavra. sempre foi muito clara para mim a diferença entre o que é factual e o que é descrito nas páginas da nossa imaginação. essa clareza rebentava comigo. escrevia coisas do fundo do poço que era a minha alma. escrevia na densidade de quem ainda se descobre e sente tudo, como se a sensibilidade fosse uma alergia de pele, uma reacção inevitável daquilo que não sabia gerir de outra forma. mas descobri que não tem de ser e continuo a ser um paradoxo. até acho que não sou muito boa a contar estórias, perco-me, faço muitos intervalos publicitários e por vezes o espectador muda de canal. e como não gosto de falar para o boneco, é talvez por isso que também escrevo, deixando ao critério de quem lê, o que quer ler e até quando quer ler e de que forma quer ler as minhas estórias com 'e'. se é o caminho que importa, como podemos ser assim tão contemporâneos?




cheirar
fui sempre uma boa aluna. daquelas que estudavam muito e faziam apontamentos que os outros fotocopiavam e liam às portas do anfiteatro antes de entrar para as frequências, e não ficava nada chateada com isso. as pessoas, sempre. o meu sorriso vulnerabilizava-me mas não sabia como dosear essa simpatia que sempre irrita tanta gente e que me saía pelos dentes já tortos mais impecavelmente tratados. tinha assumido o meu primeiro grande compromisso, o de ser-alguém-na-vida. não imaginava o quão definitivo seria este passo, tanto quanto todos os passos que se podem dar na vida - definitivos até um dia. definitivos até à finitude que a própria vida tem. também somos aquilo que fazemos e hoje sei que não quero continuar a fazer o mesmo. porque não sou a mesma pessoa e isso não implica que tudo o que tenha feito não tenha sido fruto de uma tremenda dedicação e empenho. mas não há ambições eternamente imutáveis, profissionais ou pessoais. o que há agora é alguém que se fez pessoa. uma pessoa a querer ser feliz inteira. continuo a ser naturalmente simpática, tenho o mesmo sorriso e cultivo-o. já não o sinto como uma ameaça às portas sociais, simplesmente porque é a minha identidade, o meu património.


tocar
a pele morena e o sorriso aberto induziram em erro. pensei que o aperto de mão firme tinha reforçado a formalidade da ocasião, mas às vezes as pessoas não sabem delimitar espaços quando comunicam. não falo em zona de conforto, essa deve ser usurpada tanto quanto possível e já sabemos que é só assim que vamos lá até onde nunca ninguém imaginou chegar. foi mais pela invasão de uma área protegida, um lugar para onde só convido quem quero. 'como-me-deu-espaço-para-isso'. dei? o meu sorriso não é uma porta sem fechadura. e sem contextualização aparente, desconcertando-me, insistiu em desfazer papeis que existem, distintos. sorri uma vez mais para responder que não entendia onde queria chegar. utilizando subterfúgios e alegações de modernidade, justificou-se. longamente, demasiado. e eu acabei por não responder à pergunta.  não sei se deu conta, mas não respondi porque não-dei-espaço-para-isso. quem desmontou quem, o invasor ou o invadido? cruzei as pernas e reposicionei-me. mas não vim contente. ouvi-me a pensar pela boca de um estranho e retraí-me. normal. mas nunca se sabe o que se esconde por detrás de um sorriso. 


(sentir)
amanhã ganho mais um ano de vida. se quisesse fazer um balanço, porque será que sentimos a necessidade de estar sempre a fazer balanços à medida que a vida passa, e não apenas a vivê-la?, poderia dizer que estou de papo-cheio. nunca me faltou nada na vida, pelo menos, nada do que é importante. nunca me faltaram ideias, nunca me faltou perspectiva. nunca me faltou paixão. também nunca me faltou vontade. aquilo que falta será sempre diferente ao longo do caminho que só ainda poderei tentar adivinhar. e num momento, vou querer coisas diferentes, pessoas diferentes que caminhem ao meu lado, mas não é porque as outras já não importam, não é nada disso. não é mesmo nada disso. há uma verdade imutável nesse percurso que se desenha a lápis de carvão: a de que nos vamos encontrar todos sempre, sempre. mais tarde ou mais cedo.











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