Friday, July 20, 2012

por Ana Rebelo

a menina dança, sempre




pelos olhos, cegos
encontraram o passarinho ao pé da roda de um carro. estava débil e trouxeram-no para dentro, cuidaram de arranjar uma caixa de cartão onde deixá-lo confortável sobre as folhas de papel higiénico, macias e aquecidas pelo sol que entrava pela janela. no fundo, já todos sabíamos que não íamos poder fazer muito pela vida daquele ser tão pequeno e frágil e já com uma estória tão complicada. sabíamos mas tentámos, tentámos até ao fim e com toda a convicção que o conseguiríamos salvar. cada um com a sua ilusão. o passarinho arfava, eu conseguia ver o coração dele acelerado, mas não era de felicidade, estava a sofrer. um coração bate sempre da mesma maneira, seja por dor ou por prazer as batidas são iguais na força, na cadência, na profundidade. quão enganador e ao mesmo tempo, se o escutarmos bem, ele bate certo. nem sempre quer saber, iludindo-se entre estas duas emoções extremas e tão intensas. mas ele bate certo. 


pelos ouvidos, emprenha-se
a janela estava aberta para o sol que vinha de baixo da rua brilhando nas linhas do eléctrico nº28 que passava em direcção ao Largo do Camões. a janela estava aberta, toda escancarada, mas eu não conseguia ver nada lá para dentro porque estava alta, só uns cortinados que ondulavam com o vento quente e a parede branca. a janela estava aberta e dela saíam sons, vozes graves que em uníssono cantavam. era ópera. eu ouvia muita ópera, eu quando era tu ainda ouvia muita ópera. ai como eu gosto de ópera, tão dramática, tão intensa, a banda sonora perfeita do nosso tu e eu. a música invadiu mais do que a rua, entrou por mim adentro, adentro como um sopro gelado, tão frio que congelou o sangue das minhas veias. paralisei. encostei-me ao muro todo grafitado e deixei-me ali, de olhos fechados com o sol a incidir agora no meu rosto, a queimar-me as bochechas de cor-de-rosa. e escutei, escutei tão bem. desta vez escutei muito bem, as vozes pareciam estar mesmo ali do meu lado, graves mas tão impenetráveis, tão seguras de si. a paz voltou. voltei a ser livre. como um passarinho. 


pela boca, morre-se
perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. depois do desejo, aquele desejo que nos adormece a razão, lentamente. aquele desejo que vem e sabemos ir depressa mas temos de o viver e vive-se o desejo, corremos para o outro lado onde não há oceano, corremos para a porta de desembarque e esperamos, ora sentados ora em pé, olhando quem passa, quem também espera, esperando encontrar tudo isso, sim, tudo isso que desejamos. o sorriso abre-se e deixa transparecer a fragilidade, sim, estou aqui e desejo-te. consomem-se os corpos, consomem-se numa paixão rendida, absoluta, numa paixão vermelha, transpiram os corpos e caem cansados de prazer, ao lado um do outro, ficam deitados a rir para o tecto branco do quarto branco. agarram-se para dormir como se nunca mais se pudessem largar, nunca mais mesmo. e antes de adormecer, antes de adormecer o bafo quente das palavras ouve-se, encostado no pescoço, dizem-se todas as palavras, todas as palavras proibidas são plenas, cheia de significado transformador, determinado. tudo aconteceu quando eu era feliz. 




pelo nariz, sai o ranho
chama-se sinusite. esta coisa de ter ranho na cara toda. e só quem tem poderá entender para além da expressão tão crua e sem beleza nenhuma. quando há dois lados, são mesmo dois lados e não o que mais nos convém. devem cingir-se as posições extremas quando os temas são extremos e não por causa de dúvidas existenciais sobre que camisa vou vestir de manhã para o trabalho ou se vou passar a comer sopa às refeições. há coisas que nunca poderemos entender a menos que as vivamos. não é segredo que isto me faz sofrer. os meus pensamentos ficam duros e eu não quero endurecer. eu sou meiga e doce. eu danço todas as manhãs, eu sorrio todos os dias, eu converso, eu observo. eu tenho coisas para dizer. eu não peço a ninguém que sofra por mim mas reservo-me ao direito de esperar que sim, que alguém algures me ame tanto que sofra por mim. e o sofrimento, quando é um sentimento que não está relacionado com ter o que se quer, é um sentimento muito bonito. é em sofrimento que vamos lá mesmo ao fundo para nos (re)conhecermos. vamos na esperança de encontrar algo bom e que não tenha de ser legitimado pelos outros para sabermos que é bom. geralmente, encontramos. e aprendemos que mesmo não tendo outro remédio que não sofrer já, amanhã saberemos o que fazer para não sofrer da mesma maneira. 


pelas mãos, os dedos
depois tomam-se decisões, tem de ser, tomar decisões faz parte de ser crescido. muitas vezes essas decisões são incompreensíveis para aqueles a quem as consequências são caras. outras vezes, confundem-se egoísmo com o-meu-direito-é-igual-ao-teu. mas tomam-se decisões porque já não há mais o que perdoar. já não há mais o que compreender que não os sinais. um sinal é como o alarme de incêndio: obriga-nos a parar dentro do fumo que não nos deixa enxergar, na tentativa de impedir que as chamas nos consumam. isto não é um ensaio. o passarinho não se mexia, não se mexia. fiz-lhe festas na cabeça, ao de leve, nas asinhas, ao de leve. mas ele continuava ofegante naquela luta final que se confunde com serenidade. demorei a largar, a entender no âmago do seu mais profundo significado, que a busca pela felicidade só pode ser real quando estamos dispostos a deixar ir, a deixar de lado maus hábitos e por vezes, pessoas que foram tudo para nós. e isso tem o seu tempo, claro. não é fácil, mas é necessário. porque o desfecho é inevitável. o passarinho morreu. tudo morre se não existe a coragem de aceitar aquilo que sabemos não ter outro final possível.   


(Tu és Eu)
um mais um é igual a dois. dois que são um, feitos como cada qual, de matérias diferentes. e como um que somos, temos ideias, convicções, formas de olhar as coisas que nem sempre vão coincidir. quando aceitámos que os nossos um seriam dois, aceitámo-nos. com as qualidades e principalmente, com os defeitos. aceitámos ser dois que se respeitam, dois que se amam, dois que crescem um com o outro. para que continuemos a ser dois teremos de ser sempre verdadeiros um com um, ainda que, certamente, haverá alturas em que isso vai ser difícil porque queremos impressionar o outro um com receio de deixarmos de ser dois. e quando isso acontece, a vida desarma-nos e faz com que cheguemos a uma encruzilhada. agora um mais um têm de saber se querem continuar a ser dois. se forem um mais um igual a dois, nem um nem um vão suportar destruir o sonho do outro.


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